Coadjuvantes
Coadjuvantes têm também suas próprias jornadas, seus arcos narrativos, que muitas vezes são obscurecidos ao longo do processo de escrita.
Coadjuvantes têm também suas próprias jornadas, seus arcos narrativos, que muitas vezes são obscurecidos ao longo do processo de escrita.
Para que um personagem alcance o papel de protagonista de um romance é preciso que ele supere muitos obstáculos.
Para um escritor, escolher os materiais para escrever um livro para mim é tão importante quando os que um pintor escolhe para cada tela.
Não sou nem "plotter" (planejador) nem "pantser" (que escreve no fluxo), porque me considero no meio do caminho.
O nome Emilio vem do latim Aemilius, que significa "rival" ou "o que fala bem". Considerando que o carismático ideólogo extremista é o suposto antagonista de Cláudia, a escolha mostra uma pista onomástica. Mas, para além disso, o nome é uma referência à obra Emilio, ou da educação, de Jean-Jacques Rousseau. Escrita em 1762, traz ideias iluministas sobre a formação do indivíduo puro que é corrompido pela sociedade. É uma chave para pensar o papel do personagem no livro, mesmo que a teoria do "bom selvagem" seja posta à prova neste romance a cada momento.
A Lúcia de Siracusa, padroeira dos cegos, de Emilio é uma referência a Santa Luzia, cujo martírio é muito semelhante ao narrado no livro. O dia de Santa Luzia também é 13 de dezembro, data em que acontece o massacre na escola onde Marcela estudava. No romance, a data passa a ser celebrada pelos extremistas como uma data nacional. Neste dia, em 1968, instituiu-se no Brasil o AI-5.
No começo do romance, Cláudia faz referência a ouvir um bolero "cheio de reverb e tristeza", que mais tarde saberemos ser a canção Time, da banda Pozo-Seco Singers. Ao final do romance, quando ela sai do Recreio Bonanza, escuta por uma rádio pirata, um bolero cubano, "cheio de metais solares, mas melancólicos". Em versões anteriores do livro, era incluído um trecho da canção que Cláudia ouve, mas que foi removido. Trata-se de "No toques este disco", de Bienvenido Granda. Na canção, um homem pede que tirem um disco que toca na vitrola, porque lhe traz lembranças sofridas. O fato de Cláudia ouvir um bolero cubano na rádio pirata também é uma pista sobre que países ocupam o outro lado da fronteira do que foi seu país.
O Ford Firestarter é um símbolo ambivalente no romance. É num carro deste modelo, que não existe ainda no mundo real, que Clarissa e Cláudia vão, na juventude, ao bairro da protagonista, numa cena tensa (capítulo 5). Se é num Firestarter que Cláudia aprende a dirigir (capítulo 15), é num deles que ela é atacada por fanáticos seguidores de Emilio Garza (capítulo 17). Eu quis que o carro tivesse uma personalidade, uma aura, e acabasse se tornando um motivo e, de alguma maneira, um duplo de Cláudia. Ele é seu Rocinante. Ele é envolto pela tragédia (lembremos o episódio da m0rte da versão ficcional da cantora Taylor Pie), mas se fosse um modelo real, sua palavra seria ousadia. O Firestarter exerce um fascínio em Cláudia. No meio do caminho para a Praia Azul, um animal lhe dá um susto, mas o carro se livra. Apesar disso, neste momento, ela pede para acionar o modo manual. Claro que há também um simbolismo nesta decisão da personagem, o que se nota pelo que virá a seguir. Além da ida à quebrada de Cláudia, a guerra de gangues com Firestarters blindados também são episódios que reforçam o aspecto belicoso do Firestarter, que em certa medida se confunde com a personalidade da própria protagonista. A referência é à canção da banda Prodigy, "Firestarter", ou seja, um causador de problemas. Como Cláudia. Mas ela ironiza essa visão de uma força bruta que soluciona tudo, que o carro pode evocar. Lembremos da versão que ela dá de um final escrito por Alexandre num filme a la Hollywood. A força de Cláudia não é a do Firestarter, mas uma sutil força baseada na observação e no conhecimento.
A cena do bistrô, em que Cláudia conhece Alexandre, é um ponto importante para estabelecer a relação da protagonista com esse personagem, mas também para plantar pistas sobre o destino de Clarissa. Ela está visivelmente embriagada e aos poucos a cena vai escalando em tensão. Para criar esse clima, escolhi como Leitmotiv a canção Downtown, de Petula Clark, que também tem uma escalada de euforia. Nesse caso, quis adotar também um tom irônico de uma dondoca que vai se divertir no centro para espairecer, uma referência à vida de herdeira de Clarissa. A referência à música aparece na página 223: "Uma música saía das caixinhas instaladas nas paredes revestidas de madeira. Era uma canção sobre ir ao centro e esquecer os problemas ouvindo bossa nova. Poderia ser a nova música de Clarissa, mas ela já não figurava em minha playlist."