Estou trabalhando em dois livros atualmente, mas são dois trabalhos que não sei quando termino.
O primeiro é a eterna narrativa longa para a qual insisto em recusar o rótulo de romance chamada “Estrangeiro no labirinto”, cujo nome cada vez mais faz sentido para mim, pois toda vez que volto às suas páginas sinto-me perdido entre as letras, com as múltiplas vozes dos narradores que se confundem. Escrever uma narrativa longa é um trabalho de fôlego, não pelo trabalho de ter o que escrever, mas pelo exercício de manter a coerência, o eixo da obra no mesmo lugar.
É como se você estivesse tentando conter um um feixe de gravetos com os braços nus enquanto o vento vai te empurrando: cortam-se os braços, arranha-se a mão, o rosto suado e a impressão de que a qualquer momento todos os gravetos vão voar e você não vai poder pegá-los de volta. O pior é que o feixe de gravetos só tem identidade porque você juntou cada peça. Na verdade, nada daquilo é coerente, per se. É assim com a literatura, porque ao escrever uma narrativa como essas, o natural é a inconsistência, a contradição: é como se cada personagem quisesse ir para outro lado e você insiste em sujeitá-los, em dizer que assim deve ser sua fala, seu comportamento.
Toda vez que volto ao “Estrangeiro…” eu preciso reler páginas e páginas para reencontrar a voz de cada narrador (são vários), sentir o momento e escolher o rumo. A história está toda na cabeça, mas as vozes insistem em ir para outros lados, em calar de vez em quanto. Várias vezes terminei de ler o trecho em questão e parei, sem escrever uma linha.
O outro livro é “O cotidiano oculto das feras”, que já teve também várias versões. Esse é de poemas, mas tenho bastante receio quanto à sua publicação, porque cada poema vai endereçado a uma pessoa. Temo manter os nomes, ao mesmo tempo que tirá-los faria com que muita coisa perdesse o sentido. Mas aí está a questão: se os poemas só sobrevivem se ancorados aos nomes, seria uma obra circunstancial? Eu acredito que cada texto tem camadas de interpretação, que uma não anula a outra. Por exemplo, se você ler “Residencia en la tierra” sem as notas de rodapé, o poema Alberto Rojas Giménez Viene Volando tem um sentido. Se tiver esse “excedente de visão”, para saber o que está por trás da produção do poema, terá outro.
Mas a decisão por colocar ou não os nomes das pessoas passa mais pelo respeito que tenho por elas que outra coisa: a maioria dos textos é bem dura, escrevi-os tomando cada escritor como se nunca mais o fosse ver. O problema é que a gente vai se encontrar, e talvez não gostem muito do que escrevi. Ao mesmo tempo, se não puder produzir com liberdade, assumindo riscos, de que vale a arte?
Como disse, o livro teve várias versões. Inicialmente tinha um cunho quase que epistolar, e cada ‘carta’ ia para um escritor, a maioria deles vivo – daí a pólvora. Entreguei a alguns amigos. “Você vai publicar isso mesmo?”, “Vai manter os nomes?” foram perguntas comuns. Uma agravante: eu separo, desde a primeira versão, os poemas em grupos, ou seja, as pessoas também estão em grupos.
Na segunda versão eu assumi que havia, em todos os poemas, a mesma voz, como a de um clown, mestre de cerimônias de um espetáculo grotesco, em que essas feras – os poetas, os escritores – eram exibidos a uma ‘plateia’ leitora. Invadir o seu cotidiano, dissecar cada ‘fera’ era o desafio do livro. A descoberta dessa voz me fez tirar alguns poemas, refazer outros, encontrar mais sutis diferenças entre os grupos de feras, entre os ‘tipos’ caricatos que representava. Me fez descobrir também que a lente que usava o portador dessa voz era naturalmente exagerada e as tintas estavam carregadas. Aceitei como algo natural e preservei a virulência dessa voz. Mais pólvora.
Um amigo viu, nos grupos, certa incoerência, pois eu agrupava poetas que, na ‘vida real’ não se identificavam. Mas é como se os olhos do clown vissem as pessoas com outro prisma: observar as feras era, para mim, um exercício mais metafísico do que historiográfico. Digo mais: havia uma pretensão – tola – de olhar a alma dessas feras.
Esse mesmo amigo, cujo nome preservo por enquanto, viu no espetáculo traços que lembravam o circo. Era isso: eu me centrava nas cartas e no teatro, por isso que a voz parecia dissonante, fora de contexto. Era o círco o que eu procurava desde o começo: um freak show, um circo dos horrores, expondo nossos medos – mais uma vez – mas nossa admiração pelas feras. Sim, o termo ‘fera’ também é contraditório, porque em alguns poemas acompanha características negativas e em outras são vítimas singelas do ‘cotidiano’, esse monstro que nos afasta da e nos presenteia a cada instante a poesia.
Volto aos dois livros. Desejem-me sorte. Vou precisar.
4 Comentários
Artur Lins
Postado às 12:30h, 29 agostoTopo sim, W.
Wellington
Postado às 14:41h, 27 agostoValeu, Artur! Aquele trecho mudou também. Estou precisando de beta-readers. Topa?
Artur Lins
Postado às 11:12h, 26 agostoExcelente, Wellington. Li um pouco do “Estrangeiro…”, não sei se vc já modificou aquele trecho. Nesse seu post você fala da teimosia dos personagens e do quanto você luta para eles obedecerem a seu comando. Gosto disso, de saber que o escritor tem o controle sobre as vozes narrativas de seus personagens, apesar de saber que Tolkien e Stephen King defendem que a história vai aonde os personagens a levem.
Quanto a “O Cotidiano Oculto das Feras”, creio que você já tem um ehos de alguém que bate de frente, que não baixa a cabeça frente a convenções. Você falou do conteúdo artístico estar vinculado ao nome das pessoas, algo extratextual. Ainda assim sinto a “arte pela arte” nessa tentativa.