Dia do livro é para trouxas

É uma lenda, a gente sabe. Mas é uma daquelas lendas que a gente sempre quer acreditar: diz-se que o dia 23 de abril é marcado pela morte de dois grandes mestres da literatura, Shakespeare e Cervantes, ambos ‘mortos’ no dia 23 de Abril de 1616. É uma lenda porque o calendário Gregoriano, que utilizamos hoje, só foi adotado pela Inglaterra em 1751. Resultado: Shakespeare morreu na verdade dez dias depois de Cervantes.

Mas o pessoal do marketing nem é besta nem nada, e dá uma forçada na história. Querendo ou não, dez dias de diferença não fazem diferença, né não? Os dois caras deixaram uma marca muito importante para a literatura e é legal que o dia do livro seja esse mesmo. Então, esqueçam o que eu disse no primeiro parágrafo.

Ou melhor, nem esqueçam, porque, o final das contas, de que adianta celebrar o dia do livro num país que nem lê? É aquela história de ‘o dia do livro deveria ser todos os dias’ e tal. Essas datas só servem para incentivar o consumo, sem uma reflexão sobre a importância do livro enquanto objeto simbólico. Se eu falar para alguns alunos universitários desse lance de livro enquanto objeto simbólico eles me mandarão plantar batatas. Aliás, quem deveria estar fazendo essas reflexões, se a maior parte da população está mais preocupada com a polêmica envolvendo Angra e o Parangolé? Então esquece de novo o que eu disse nesse parágrafo.

Mas Cervantes e Shakespeare viviam numa época tão diferente assim? A galera do saudosismo diz que hoje se lê menos e coisa e tal. Pior: que se lê mal. Eu já nem sei o que é a boa leitura, se acho que bom é, no mínimo, ler, mesmo que seja Crepúsculo. Não sei é de nada. Sei é que que se não insistir, fera, nem tem jeito, melhor esquecer. Porque, pra maioria dos meninos é mais legal jogar GTA do que ler O Invasor [1. Por sinal, foi relançado esse livro de Marçal Aquino pelo selo Má companhia, da Cia das Letras], embora os dois trabalhem com a vida loca de maneira bem peculiar. Na época de Cervantes e Shakespeare pouca gente sabia ler. Hoje, pouca gente quer ler. Se bem que, no final das contas, nunca teve muita gente querendo ler. Mas aí tem o lance também: o cara dá quinze contos numa entrada de cinema e não dá trinta num livro. “Mas é o dobro do preço” e coisa e tal. Mas o livro dura mais, né não? Mas o livro tinha que ser mais barato ainda, né fera? O povo do livro sabe. O pessoal das livrarias, que cobra 50% pra expor livro na estante (ou pra colocar pelo menos no catálogo de busca) também sabe do que eu tô falando, né não? Heim?

O problema é que ensinaram pro pessoal que livro é coisa de escola, de trabalho pra nota. Ler Machado de Assis pra complementar a nota com júri simulado e coisa e tal. E o prazer fica meio de fora. Aí, pedir pro cara ler é quase um ato de sadismo, né não? Então, falar do dia do livro é lembrar do trabalho que dona Júlia passava para a segunda unidade e que o menino tinha que fazer. Ler sem compromisso, por prazer, parece que a gente desaprendeu. Mas ainda tem uma galera que resmunga que se lê mal. Acordem: o lance agora é que, simplesmente, não se lê. Contar nos dedos quem lê como costume, levar livro pro trabalho, pro ônibus, pro banheiro. Reclamar dos best sellers é se preocupar com o mínimo. Ei! Cervantes foi um best seller, otário! E piratearam pra caramba o cara, tanto que na segunda parte ele ainda tira uma onda com as cópias. Tá lá, é só ler. E não é assim hoje não, com as fábricas de best sellers? Um descobre um nicho de mercado e a galera sai copiando histórias de vampiros, zumbis, amores que foram pra guerra do Iraque blá blá blá.

E olhe que eu nem defendo os best sellers. Eu odeio literatura enlatada, vá por mim. Mas não me iludo de rotular tudo, né fera? Mas eu falava do quê? Do dia do livro. Esquece, esquece tudo o que eu disse. Aliás, eu nem deveria ter escrito isso. Eu deveria era estar lendo um livro. É isso, vou ler um livro. Faça o mesmo, vá.

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