Hoje foi dia de arrumar minha biblioteca, que estava um caos com a volta das aulas. Minha secretária vai enfiando os livros onde há espaço, não se preocupa em nenhum momento em colocar Bacherlard ao lado de Afrânio Coutinho. Também não posso esperar muito: minha bagunça diária é demais para qualquer pessoa normal.

Mas estava colocando devolta  Umberto Eco quando vi um livreto apertado no final da prateleira. Puxei: era um livreto tamanho A6 com a capa em ofício 40kg. A capa estava bem amarelada, principalmente na dobra. Na folha de rosto, o selo da Livro 7. Na hora lembrei que foi o primeiro livro de poemas que comprei. Já tivera outros, mas normalmente achados ou ganhos. A bem da verdade, tinha comprado outro. IUm livro com uma paronomásia infame como título: “Em louco ser”. O autor quase me obrigou a comprá-lo. Não partiu de mim. Já esse da Livro 7 foi o primeiro que tive a intenção pura e simples de comprar, não porque conhecia, mas pelo instinto que me seguiria dali em diante: o instinto do garimpador de livrarias.

Eu saía do trabalho aos sábados para a Livro 7. Aquele galpão imenso, sem luxo, mas lindo. Não tinha nada do ambiente refinado da Livraria Cultura, mas as lembranças que me traz não se comparam ao esterilizado espaço da livraria do Recife Antigo. Bons tempos os da Livro 7. Sem saudosismo, lembro do xadrez nos fundos, onde hoje é a Nossa Livraria. Lembro dos bancos de madeira onde você sentava para ler e ninguém vinha lhe encher ou para perguntar já foi atendido, senhor.

Eu trabalhava no comércio, era um moleque de 18.  Lembro disso porque o livro era de 1994, segundo a folha de rosto. No lugar da ficha técnica, agradecimento a Foto Beleza – nem sei se existem ainda, mas deveriam existir; acho que existem sim, ali na Manoel Borba. A edição é completamente artesanal. Os tipos em Courrier New são de um tempo em que não se faziam livros no Indesign nem mesmo no Word.

Lembro de chegar tímido à estante de poesia, de ter pouco dinheiro para comprar um livro, mas saber que eu precisaria sair dali com um livro. Normalmente eu pegava emprestado na biblioteca do SESC, mas nunca poesia. Nessa época eu li Dostoievski (O jogador) e Kafka (A metamorfose). Poesia, só os livros que ganhara na escola e que chegaram a mim de uma maneira que não sei.

Naquela tarde na Livro 7, decidi comprar aquele livreto. Era “Dose dupla”, de Francisco Espinhara e Jorge Lopes. O primeiro poema eu li ainda ali, de pé, diante de uma prateleira que ficava perto da parede.  O poema era este:

Black Sabbath

Quero as manhãs incendiadas
O resto do dia diabo aceso

As cabeças ds mães degoladas
O monge da paz num poço preso

Que despenquem das varandas
Flores de bálsamo perfumadas

Venham ungidas de lavanda
As faces das crianças maceradas

Que o golpe destro do punhal
Esfrie o sabor da língua

Que o ódio atropele o amor
Não se dê à paz morada

O mundo seja um barril de dor
A rola incessantemente pela escada.

Li de um só fôlego e o poema me aprisionou. Eu acho que demorei todos esses anos para descobrir, que esse poema é a gênese de toda a minha poesia. Quando o leio, e vejo [desvirtual provisório]O peso do medo, percebo nuances que não tinha percebido antes. Espinhara, que não cheguei a conhecer e que naquela época, determinou quem eu seria como poeta com um único poema. Tudo o que veio depois foi uma consequência dessa semente inicial, desse proto-poema em mim.

Às vezes ainda me pego perdido nessas lembranças, nesses textos-calabouço. Não me entristeço de estar, eventualmente, preso a eles, porque são parte da bagunça que sou, das muitas estantes que tenho que por em ordem para continuar sendo ou para me reinventar.

2 Comentários
  • Julia Larré
    Postado às 09:26h, 03 abril Responder

    Lembrei de mim, quando li Cântaro de Cida Pedrosa…

  • Lucas Magno
    Postado às 23:38h, 02 abril Responder

    Mundo pequeno! Conheci Francisco a irmã dele, Graças Espinhara, foi minha professora durante todo meu ensino fundamental. E no primeiro ano do ensino médio ela me levou pra conhecê-lo. E ele me disse uma coisa que nunca vou esquecer: “Faça valer a pena” ( no final de uma entrevista que fiz com ele, para um trabalho)
    A forma com que ele disse e me olhou.
    Marcou;

Comente