Há duas perspectivas que podemos tomar quando pensamos na gestação e um livro. A primeira é de que não controlamos a fagulha inicial, o lampejo que alguns chamam de “inspiração”: ela simplesmente vem, em algum momento, sem que saibamos como nem de onde.
A outra envolve assumir que a criação literária é um ofício e, como tal, demanda tempo de prática e exercício. O trabalho constante sobre as palavras fará com que, em dado momento, tenhamos a primeira peça do mecanismo que vamos criar. Depois, deveremos criar a outra e a outra e a outra, até que a máquina opere sem nós.
No Ocidente, essas duas perspectivas estão associadas também a duas concepções de arte: a platônica e a aristotélica. Grosso modo, o platônico é um crente no poder da inspiração e o aristotélico crê na transpiração. Não tenho nenhum problema em assumir que as duas perspectivas são válidas, de acordo com as circunstâncias.
Na minha perspectiva, um livro nasce com uma voz, uma dicção, que permanece durante algum tempo com o escritor. Durante o processo de gestação de um livro, uma das coisas mais difíceis é encontrar dicção que conduzirá o livro, mas, uma vez encontrada, é importante seguir trabalhando para aproveitar ao máximo essa “centelha”, por assim dizer.
Por outro lado, acontece com o escritor o mesmo que sucede com o pintor: é preciso saber quando parar, quando a próxima pincelada vai saturar as cores na tela. Não é à toa que Carlos Drummond de Andrade é autor da frase célebre “Escrever é a arte de cortar palavras”. Por isso, muitas vezes aquilo que surge como a “inspiração” inicial para uma obra pode, sem pudor, ser cortado durante o processo.
2 Comentários
Wellington de Melo
Postado às 11:49h, 28 fevereiroVeja a sabedoria dela. É verdade. Nunca se sabe se uma versão não publicada teria sido melhor que a que veio a público.
Gerusa Leal
Postado às 11:47h, 28 fevereiro“Até cortar os próprios defeitos pode ser perigoso. Nunca se sabe qual é o defeito que sustenta nosso edifício inteiro.”
Clarice Lispector