Li recentemente em um site uma excelente crítica aos novos ‘movimentos’ literários em Recife. Já não era sem tempo.
Era preciso haver uma crítica séria, que mostrasse os perigos desse verdadeiro oba-oba que esses jovens vêm montando na cidade. Não posso fugir do clichê de citar Nelson Rodrigues ao dizer que toda unanimidade é burra. Afinal, é só na dialética que reconhecemos o valor efetivo desses grupos e da produção literária advinda deles. Mais: diria que é papel de críticos como o autor do artigo em questão começarem a escrever sobre o que realmente importa na vida literária desses jovens, ou seja, sua produção. Não me resta dúvida, e aqui me refiro diretamente ao Crítico, que já deve ter lido tudo o que eles andam produzindo. O segundo passo, espero, será uma análise crítica dessa produção insípida desses começos de XXI em Pernambuco.
Mas voltando ao texto do Crítico, eu apontaria apenas algumas inconsistências na articulação de seu argumento, o que aparentemente denota que não entendeu ainda o que está acontecendo na ‘cena literária’ (não sei se é digna do termo, na verdade). Para mostrar esses problemas, seria interessante fazer um breve histórico dos dois grupos citados, quais sejam o Nós Pós e o Urros Masculinos. Advirto que o meu relato é completamente parcial e se baseia em minha frágil e fragmentária memória. Perdoem os envolvidos por qualquer omissão ou distorção da realidade. Ao Crítico, advirto que meu texto se apresenta muito mais como uma ampliação do espaço da crítica do que uma mera réplica.
O Nós Pós nasceu em 2007 do desejo de um pessoal de criar um espaço para a divulgação do trabalho de novos autores e de encontro com autores consagrados (nomes como Lucila Nogueira e Raimundo Carrero participaram do Nós Pós, dividindo o espaço no microfone com os ‘novos’). Fui convidado a participar da edição 6 porque um dos organizadores leu um livro meu e decidiu me chamar. Aliás, ler autores jovens de maneira despretenciosa é um exercício ainda raro à crítica. Creio que me apresentei três vezes no Nós Pós, que então contava com Artur Rogério, que era um dos idealizadores, e pessoas como Alexandre, Ana Maria, Danuza e Jhonatan, que faziam a produção com muito carinho e dedicação.
Artur Rogério, que já tinha contos publicados em antologias e suplementos culturais então, saiu do Nós Pós em 2008, mas o grupo continuou promovendo encontros. No mesmo ano Artur chamou alguns amigos, entre eles Biagio, Bruno Piffardini e Cristhiano Aguiar – todos eles já tinham se apresentado no Nós Pós. Fundaram o Urros Masculinos (não sei quem deu a ideia do nome), que era na verdade uma brincadeira com o grupo recitativo “Vozes Femininas”. Cristhiano Aguiar nunca chegou efetivamente a fazer parte do Urros. Fernando Farias (contista) integrou o grupo por algum tempo e Biagio teve que deixar o grupo por questões de agenda. No final de 2008 eu entrei para o grupo, que até então tinha feito uma apresentação no Quartas Literárias, produzido por Silvana Menezes, e estava se preparando para outra apresentação, que acabou não acontecendo. A formação atual do Urros então seria Artur Rogério, Bruno Piffardini e este que vos escreve.
Só esse breve histórico já demonstra a você, Crítico, que os dois grupos são de naturezas diferentes, com propostas diferentes. Logo, o corpus alvo de sua fúria é no mínimo inconsistente. Não me estranhará se, em alguns meses, acrescentar ao hall dos macacos literários o grupo Dremelgas, que com seu lindo texto “Pra que tudo isso?” dá um tapa nessa profusão de festas, festivais e coisa e tais literários (irônico, não?). O Dremelgas possui ex-integrantes do Nós Pós, do Urros ou de nenhum deles! Curioso notar também como não citados entre os primatas grupos como o Vacatussa ou a Crispim, ambos anteriores aos grupos citados, embora com uma proposta menos subversiva. Já que se colocam grupos diferentes, sejamos pela diversidade e coloquemos todos num balaio de gatos só. Ou de macacos.
Mas a afirmação mais contundente do seu texto é transcrita aqui:
“o clima de irreverência e ‘dane-se a Academia’, ou os agentes literários, ou o mercado editorial, ou mesmo o leitor ou ainda uns aos outros (no pior sentido da palavra – ou no melhor, quem sabe) é a tônica.”
O Crítico. Coloquem no Google, se quiserem.
Observe-se que na análise do Crítico – nesse momento me volto a você, ó leitor curioso – sua breve análise desses grupos, tão díspares entre si, também utiliza ‘grandezas’ diferentes, pois mistura espaços de legitimação da literatura com instâncias da cadeia produtiva do livro – além, claro, de uma sintaxe sofrível, o que não vem ao caso. Mas ignorando a sua falta de parâmetros, consideremos se podemos identificar essa postura vintage-new-punk–retrô nos grupos que citou a partir da sua trajetória. Realmente não sei de onde tirou essas ideias, mas devo dizer que são bem anos 80. Mas para mostrar quão estapafúrdia é a sua afirmação, é preciso falar sobre a segunda fase do Urros.
Quando entrei no grupo no final de 2008, tinha a ideia fixa de tentar criar novas maneiras de interação entre os escritores e os leitores, aproximá-los. Levei isso ao grupo, discutimos e realizamos em abril de 2009, na semana de Manuel Bandeira, a primeira ‘macaquice literária’ (sic): lemos “Vou-me embora pra Pasárgada” numa praça de alimentação de um grande shopping no Recife. Não vou pedir que entenda o simbolismo do ato, ó Crítico – não vocês, queridos leitores – pois talvez seja pedir demais. O que houve de novo, diferente das ‘intervenções’ públicas que costumamos ver desde sempre, foi que nessa aglomeração instantânea tanto escritores como leitores (principalmente esses últimos) foram chamados pela Internet para a leitura e tudo seria muito espontâneo, sem ensaios, sem cordões de isolamentos entre essas duas ‘raças’ (escritores e leitores). Isso, em si, não é novo. Chama-se flashmob e você, ó Crítico, já deve ter ouvido falar. Pode parecer modernoso e pop-cult, mas por que não procurar outras maneiras de se vivenciar literatura, longe dos saraus e colóquios acadêmicos? Se chama essa busca de macaquice literária, pois então eu sou macado desde menino.
O segundo ‘ato simiesco’ (estou dando um ar mais acadêmico para que o Crítico se sinta mais confortável) foi uma coisa banal: o Sarapateliterário. Foi só o primeiro leilão de manuscritos e originais de escritores no estado de Pernambuco. Foram leiloados manuscritos Lucila Nogueira, Gilvan Lemos, Jomard Muniz de Britto, Raimundo Carrero, Terêza Tenório, Cida Pedrosa e Valmir Jordão. Você, como um grande conhecedor da literatura atual produzida no estado, deve saber que esses nomes vão de desde membros da Academia, a antiacadêmios passando pelos que não estão nem aí para ela. Porque, mais uma vez, não interessava ao Urros o seu ‘dane-se a Academia’: interessava congregar várias vozes para algo maior, mais visceral: a FreePorto – a macacada final de 2009. O dinheiro arrecadado no evento foi todo revertido para a festa.
Mas antes de chegar a ela, temos direito a saltitar como macacos e nos jogar no chão, repetindo versos de Drummond. Eis que acontece em outubro a segunda flashmob do Urros: No meio do caminho. As pessoas deveriam jogar-se no chão e repetir, por dois minutos, os versos acima. “E isso é literatura?”. Claro que não, ó Crítico meu. Isso é vivê-la, senti-la em todos os seus poros enquanto se está no chão de um lugar frequentado por milhares de pessoas, impedindo a passagem dessas pessoas e sentido o chão tremer em seu corpo enquanto se repete Drummond como um mantra. Pergunte se os que participaram da coisa acham algo parecido, se em algum momento de suas vidas vão esquecer essa experiência. Macaquice é um ponto de vista.
A FreePorto foi outra peça pregada pelo Urros. Muito já se falou sobre a festa e não adianta repetir aqui, pois imagino que para ter escrito seu texto, ó Crítico, deve ter ido e odiado. É claro que havia a ironia à Fliporto, mas não só a ela: ao engravatamento, à literatura se achando mais que qualquer outra coisa, aos eventos literários convencionais e repetitivos Brasil afora, ao gabinete como verdade suprema. E, mais uma vez, fomos coerentes: queríamos uma festa com leitores e escritores se misturando, conversando, trocando ideias sobre tudo, inclusive, veja só, literatura! Da mesma forma, conseguimos juntar numa mesma festa escritores das mais diversas dicções e ideologias por algo comum: celebrar a literatura.
Se observar bem, fica difícil depois desses dois parágrafos você sustentar, ó Crítico, a coisa do ‘dane-se o leitor’ e ‘danem-se uns aos outros’(sic, eu realmente não sei como ‘se danam uns aos outros’). Restam agora os ‘agentes literários’ e o ‘mercado editorial’. Nesse ponto, você finalmente fala algo interessante. Cito:
“Tudo cuidadosamente maquiado para disfarçar suas faltas de opções estéticas por meio do riso fácil e de uma falsa ironia que antes de atingir negativamente seus alvos parece ser uma isca para o próprio mercado editorial que se debruça muitas vezes a um humorismo capenga e a um tipo de texto que pretende salvar vidas e corações, mas que é muito mais representativo de um vazio tão comum àquela onda que busca apenas o choque calculado pelas atitudes pretensamente ‘inovadoras’.
O Crítico. Google.
Você quase entendeu, ó querido Crítico! A diferença é que não há maquiagem alguma, não há subterfúgios. Há criatividade, trabalho e perseverança. Não há alvos a serem atacados: o objetivo é suscitar a crítica e subverter certas visões estagnadas. É óbvio que nosso objetivo é desviar o olhar para essa nova produção! Sempre foi isso desde o começo! Não são ‘academias de jovens’, são grupos de escritores que sim, querem ser publicados e seguem caminhos pouco convencionais para tal. Parece-me curioso, no entanto, que só nesta parte do texto se fale finalmente da produção desses autores, porque o artigo do Crítico se limita a falar do ‘auê’ promovido por essas festas literárias. O Crítico perdeu a oportunidade de escrever um excelente texto. Um texto que seria um grito de “onde está a produção dessas pessoas festeiras?” Ao invés disso, limitou-se a um resmungo reacionário e inóquo sobre movimentação literária.
Sua análise (eu sei, meus leitores, curiosos por ler o texto do Crítico; já falei, Google), por fim, se baseia num argumento externamente incoerente, como que saído de uma mente autista. E ela começa a ser incoerente – análise, não a mente autista – justamente quando fundamenta sua retórica no ‘prefiro não fazer’ – talvez mais para dar uma cara pop-cult-Cosac-Naify-Livraria-Cultura a seu texto do que por outro motivo. Parece que estamos vendo realidades diferentes, pois enquanto você avalia esses grupos primeiro como ‘movimentos’, rótulo que nunca foi imposto por eles mesmos. Segundo, como uma oposição pura e simples a tudo, um bando de niilistas perdidos. Na verdade, o que esses grupos têm é justamente fé. Fé de que exista vida inteligente nas academias, que as editoras tenham um olhar mais cuidadoso para a produção contemporânea e ainda não premiada, de que ainda vale a pena escrever num país com a média de livros comprados e lidos como o Brasil.
Esses grupos compartilham essas experiências como quaisquer escritores contemporâneos de outros compartilharam. Isso não implica qualquer identificação estética ou pressupõe a criação de um manifesto da literatura contemporânea do século XXI, pelo amor de Deus! A manutenção desses grupos ajuda, de alguma forma, a fazer aparecer para a Academia, para os leitores, para o mercado editorial, para os próprios escritores – não necessariamente nessa ordem – essas novas vozes que, como bem disse o Crítico, passarão – e precisam passar – pelo crivo do tempo. Talentos individuais aparecerão, grupos literários farão seu papel e serão esquecidos, mencionados talvez num seminário qualquer, vinte anos depois. C’est la vie.
À guisa de tornar o exercício da crítica mais objetivo, proponho ao Crítico que, ao invés de ridicularizar as macaquices literárias desse pessoal desocupado de Pernambuco, desses escritorezinhos festeiros, que faça o que propus em meu primeiro parágrafo: leia a produção desses autores e escreva sobre essas obras em construção. Não há dúvidas de que terá material suficiente para demonstrar quão fraca é a literatura atual se comparada à dos mestres (?). Se divertirá, por exemplo, com meu primeiro livro, motivo de embaraço para mim e que terei que levar à tumba. Mas só assim se tornará um crítico literário e não um colunista social com achaques de academicismo.
De qualquer forma, gostaria de parabenizá-lo mais uma vez pela iniciativa de escrever seu artigo. Seu texto é o primeiro que, abertamente, critica grupos como o Nós Pós ou o Urros Masculinos. Isso é excelente porque é uma maneira também de você aparecer, à melhor maneira de Bartleby, sem fazer absolutamente nada.
Fotos: Felipe Ferreira, Wellington de Melo
3 Comentários
Dudley
Postado às 17:00h, 23 marçoSe é pra ficar nos trocadilhos, esse texto é da Hora.
Wellington de Melo
Postado às 19:52h, 25 janeiroSó pra ficar nos trocadilhos!
LN
Postado às 19:47h, 25 janeiroE que CADA MACACO fique, literaturamente, NO SEU GALHO.