Coringa 2 e o segundo volume do Quixote foram moldados por suas recepções controversas e neste artigo explico por quê.
Fui assistir no cinema Coringa – Delírio a dois. O filme recebeu duras críticas, que em sua maioria acho injustas. Mas não vou entrar nessa bola dividida, quero na verdade lançar uma pergunta, advinda de um insight que o filme me trouxe: como fatores extra-literários ou externos ao mundo da arte impactam na produção artística?
Isso se deu após assistir a uma resenha da Isabela Boscov, em que ela fala sobre a recepção do primeiro Coringa e de sua apropriação pela por uma cultura permeada por discursos de ódio. A crítica defende que esse fato deixou o diretor “mortificado, furioso, magoado e inconformado” com a leitura enviesada que o primeiro Coringa proporcionou e seu segundo filme é uma clara resposta a ela.
Ao deixar claro que não existe Coringa, mas Arthur Fleck, o diretor desfaz, segundo a crítica, qualquer possibilidade de classificá-lo como anti-herói ou mesmo vilão: trata-se de uma pessoa patética, com histórico de doença mental, digna de pena, mas não de admiração – e aqui sou eu complementando.
Nesse ponto da resenha de Boscov, me ocorreu um paralelo na história da literatura: o segundo volume do Quixote, de Miguel de Cervantes. Ambos o filme Coringa 2 e o volume 2 de Dom Quixote foram criados em resposta a recepções e apropriações inesperadas de suas primeiras obras. Vou explicar por quê.
Coringa e Quixote: paralelos
Mas antes de pensar no paralelo extra-artístico, há outros pontos que unem o Coringa ao Quixote. Vejamos: ambos os personagens encontram-se em uma fuga da realidade, porém de maneiras distintas. O Coringa do filme de 2019 é um homem que, devido a traumas e abusos, se isola em uma espiral de violência e loucura, buscando uma forma de existir em uma sociedade que o marginaliza. Sua fuga da realidade é marcada por uma desconexão progressiva com o mundo ao seu redor, culminando em uma transformação completa em um símbolo caótico e anti-herói.
Já Dom Quixote, criado por Cervantes, é um nobre que, influenciado por histórias de cavalaria, adota a identidade de um cavaleiro andante, vivendo em um mundo de fantasia onde batalha contra moinhos de vento que acredita serem gigantes. A fuga da realidade de Quixote é mais idealista, movida por um desejo romântico de justiça e glória. A empatia que sentimos pelo Quixote é permeada por sentimentos de pena, ainda que sua jornada patética nos faça dar risadas ao longo da leitura. Isso, no entanto, só se dá no fim do segundo volume.
Dois finais, o mesmo resultado?
Aqui, um alerta de spoiler. Pare agora se não quiser saber. O fim de ambos os personagens apresenta uma curiosa semelhança: tanto Coringa quanto Dom Quixote morrem. Por um lado, a morte de Dom Quixote é uma reconciliação com a realidade, um retorno à sanidade e à aceitação de sua verdadeira identidade. Da mesma forma, há na morte do Coringa de Todd Phillips uma aceitação de sua condição, uma negação da personagem fantasiosa. No final, Arthur Fleck é o que resta e isso não é suficiente para seus seguidores, que o querem Coringa.
Essa conclusão definitiva garante que suas histórias terminem sob o controle absoluto de seus criadores e que nenhuma continuação possa ser feita. Trata-se de uma tentativa de encerrar a possibilidade de continuações desvirtuadas. E aqui, entra um fator extra-artístico que influenciou ambas as obras.
Apropriação indébita
Todd Phillips, ao lançar Coringa em 2019, talvez não esperasse que o personagem fosse adotado por movimentos de extrema-direita e pela cultura “redpill”, que distorceram a mensagem do filme para fins ideológicos. Segundo Aaron Freedman, do Jacobin Brasil, “O ‘fascismo amigável’ no Coringa” é uma interpretação que muitos críticos veem como uma deturpação do discurso original do filme. O impacto desta recepção levou Phillips a abordar essas interpretações no segundo filme, tentando desarticular essas interpretações. É preciso “destruir” a imagem do anti-herói extremista, Arthur Fleck deve sobreviver ao Coringa e a seus apoiadores.
Da mesma forma Cervantes também teve uma recepção de seu primeiro Quixote atravessada por um fenômeno extra-literário. Alonso Fernández de Avellaneda é o pseudônimo de um homem que escreveu uma continuação de Dom Quixote, antes de Cervantes terminar e publicar seu próprio segundo volume. Embora não se saiba quem era realmente o tal do Avellaneda, certo é que Cervantes ficou muito irritado com as “versões”, a ponto de isso virar tema de trechos do segundo volume. As piscadelas que Cervantes dá ao leitor de Avellaneda e as estocadas que dá no plagiador, muitas vezes destoam do resto da trama.
Recepção do Quixote
A obra de Avellaneda foi recebida com desdém por parte de Cervantes, que criticou as falsas aventuras do “outro” Quixote em seu segundo volume. É um caso curioso em que o personagem ficcional é usado pelo autor para passar recibo a seus inimigos do mundo real. Mas o fato é que a resposta de Cervantes foi tão eficaz que a versão de Avellaneda foi esquecida e hoje é pouco conhecida.
Apesar disso, há estudos que até analisam como esta “vingança” contra Avellaneda forçou Cervantes a precipitar o final da escrita de seu segundo volume. Vários críticos levantam questionamentos sobre a qualidade do segundo Quixote ter sido prejudicada por esse fator extra-artístico, o que parece ser outro paralelo com o filme de Phillips: até que ponto a necessidade do diretor de desfazer equívocos ideológicos interferiu no resultado de seu filme?
O que dizem os fãs serve?
Muitos fãs e críticos sentiram que a sequência não conseguiu capturar a essência do primeiro filme e que o uso excessivo de elementos musicais foi um anticlímax. Na verdade, creio que foi um cálculo muito preciso do Phillips no caminho dessa desarticulação com o discurso de ódio propiciado pelo primeiro Coringa. Duvido que fãs de anti-heróis proto-fascistas de quadrinhos gostem de musicais.
Todd Phillips não precisaria de um Coringa 2. O caótico final do primeiro levantava críticas importantes que nos faziam refletir sobre saúde mental no capitalismo, sobre a manipulação da mídia e sobre a necessidade de repensar nosso modo de vida. Apesar disso, parece que entenderam tudo de um jeito muito errado e o discurso apolítico se sobrepôs a todas as outras reflexões e a personagem desconectou-se de seu criador.
Mas então, Coringa 2 presta?
No caso da obra de Cervantes, vale observar que, embora Dom Quixote não tenha morrido no primeiro volume, a obra terminou em um ponto onde muitas interpretações poderiam sugerir o fim de sua jornada. Ao escrever um segundo volume, Cervantes o “ressuscita” para dar continuidade à sua saga, que é fechada com uma inequívoca morte – como a de Arthur Fleck, apunhalado na prisão – que assegura que a história terminasse com ele, impedindo que outras versões apócrifas pudessem continuar a história de seu personagem.
De minha parte, acho o Coringa 2 um bom filme. Um ponto fora da curva é a cena do julgamento, a partir do momento em que Arthur Fleck assume sua defesa. Parece haver ali uma desesperada tentativa de ajeitar as coisas aos 45 minutos do segundo tempo, como Cervantes incluindo as sequências de Avellaneda como colcha de retalhos no segundo Quixote. Tirando isso, o diretor, como um artista responsável e conectado com seu tempo, tentou e, conseguiu, como Cervantes, matar seu personagem. Ainda assim, e paradoxalmente, o tornou eterno.
2 Comentários
Wellington de Melo
Postado às 11:27h, 22 outubroLeia o Dom Quixote! Mas, cá para nós, esse spoiler demorou mais de 400 anos, hein? :D
Silvio Luiz
Postado às 11:12h, 22 outubroEu assisti Coringa 2 e também gostei. Preciso ler D. Quixote, já tá no meu kindle, embora já tive spoiler do fim dele. (: