Durante uma sessão on-line das câmaras reunidas do Tribunal de Justiça do Amazonas, o desembargador Yedo Simões derrubou sem querer o fundo que utilizava como cenário. Tratava-se de uma biblioteca falsa. No Recife, a última filial da Livraria Cultura da cidade, que ficava num shopping da Zona Sul, fechou as portas. O que estes dois eventos dizem sobre o Zeitgeist de nosso tempo e por que os relaciono? 

Durante a pandemia de covid-19, popularizaram-se as lives, eventos promovidos muitas vezes por artistas para divulgar seu trabalho ou gerar receita, numa época em que o setor da cultura se viu sem possibilidade de existir em espaços públicos físicos. Por outro lado, as ferramentas de vídeo-conferências também passaram a ser usadas para fins de trabalho remoto, sem o glamour das lives. Aulas, reuniões, eventos acadêmicos e afins aconteceram nesse formato, quebrando a barreira entre o espaço do trabalho e a casa das pessoas, o que precarizou as relações de trabalho ainda mais.

Como uma estratégia de criar um espaço mais neutro para esses encontros, de modo a diminuir a invasão do espaço privado, o recurso dos fundos digitais virou moda. Era legítimo não oferecer aos participantes das reuniões ou aulas detalhes sobre suas casas. Em algumas situações, os fundos ajudavam mesmo a ocultar o espaço precarizado em que esses alunos ou trabalhadores viviam. O fundo falso era uma ferramenta de manter alguma dignidade.

Fundo falso e ostentação

No entanto, tudo que é inventado pelo ser humano é passível de distorção de seu uso original, e os fundos falsos não serviam apenas para esse fim nobre da preservação da intimidade, mas como parte de uma cultura de ostentação. Quem não lembra da biblioteca falsa do filho do presidente logo no começo do advento dos fundos falsos, desmascarada logo em seguida, para nosso riso e quase nenhuma surpresa?[1]Não vou colocar links para matérias sobre isso, seguindo o conselho de  Sabrina Fernandes, do Tese Onze, em seu vídeo “Engajamento errado“, essencial para as eleições de 2022, … Continue reading O fato é que, depois que se popularizaram, os fundos falsos passaram ao status de tudo que é deslocado de sua função original: resvalou para o Kitsch.

Eu, que tenho andado meio por fora das tendências do mundo on-line para escrever minha tese de doutorado e meu novo romance[2]Aguardem novidades por aqui, e assinem o blog receber atualizações, não sabia do advento dos fundos falsos físicos, uma ressignificação dos fundos digitais e que deve começar agora, com o desmascaramento do desembargador, seu caminho de queda rumo ao cafona (caminho é uma forma de dizer, já que o fundo falso físico é cafona em sua gênese farsesca).

Parece curioso que os livros possuam ainda esse espaço no imaginário da burguesia, Não vou fazer uma análise sociológica desse fenômeno, mas fica claro que, se existe uma cultura da ostentação, aqui vemos a ostentação da cultura como a face de parte de uma classe que, a despeito do desprezo que normalmente ela nutre pelo conhecimento científico, busca associar-se à cultura letrada para criar uma aura de credibilidade. Claro que outra parte dessa burguesia, a maior parte, me arrisco, não está nem aí para a cultura letrada, e se orgulha de ser ignorante. Pelo menos são autênticos idiotas, o que talvez seja melhor que um idiota que se passa de letrado, como o dito desembargador.

Livrarias de fundo falso

O fechamento da última filial da Livraria Cultura no Recife, sobre o qual tive notícia por meio do perfil do Instagram do blog Menos 1 na Estante, pareceu-me emblemático nessa semana de bibliotecas de fundos falsos, porque para mim representa mais um estágio da falência de um modelo de livraria no qual não acredito.

Já falei sobre isso anteriormente: a defesa das livrarias não deve se confundir com a defesa de um modelo de consumo que não leva em conta a sustentabilidade econômica nem a dignidade dos trabalhadores envolvidos em determinado setor. Muito já se falou de comércio justo e consumo ético e os dilemas e desafios do mercado editorial brasileiro[3]Este texto do Jaime Mendes aponta questões importantes e encaminhamentos válidos., mas eu insisto em uma coisa: as livrarias são um espaço de formação de consumo, mas também de construção de uma identidade comunitária, na perspectiva de uma cultura leitora.

A essência perdida

Quando a Livraria Cultura do Paço Alfândega, na região central do Recife fechou, concedi uma entrevista ao jornalista Haymone Neto, no programa Em Discussão, na qual expus meu ponto de vista: não havia muito o que lamentar, em sentido estrito, pelo fechamento da Livraria Cultura, porque o modelo que ela representava era nocivo e desrespeitoso. 

Num sentido amplo, devíamos lamentar o fechamento de qualquer livraria, claro, mas por que eu deveria chorar pelo fechamento de uma livraria que não valorizava seus funcionários, muito pelo contrário, os assediava, e que praticava um modelo exploratório com as editoras parceiras?  Lamento, mas não teriam minhas lágrimas. Também não terão agora, com o fechamento da sua última loja. Num shopping, lugar que, por si só, me parece avesso à construção de uma cultura leitora. Mas essa é outra conversa.

A livraria não é um negócio qualquer, embora qualquer negócio possa levar em conta o consumo ético. Assim como os fundos digitais tiveram sua função de preservação da intimidade desvirtuada, parte das livrarias, principalmente as grandes redes, parecem ter perdido sua essência. Da mesma forma como aquela parte da burguesia que pensa que ostentar cultura as transformará em algo distinto, livrarias que se esquecem de sua missão na formação da cultura leitora só estão fingindo ser livrarias. Mas não se dá para enganar todos por muito tempo.

"Saldão Literário": estudo de caso

Entre os anos de 2009 e 2010, Recife vivia um momento importante de renovação da Literatura, com rodas de leitura como o Nós Pós e eventos como a FreePorto, criado pelo grupo Urros Masculinos, mais tarde rebatizado de Três Tigres, do qual eu era um dos integrantes com os escritores Artur Rogério e Bruno Piffardini. No final de 2009, o poeta e livreiro Pedro Américo de Farias propôs que fizéssemos um evento na livraria Cultura do Paço, como um balanço do ano, no começo de janeiro de 2010. 

A ideia era trazer escritores e leitores para um momento de leituras, bate-papo e celebração em torno do livro e da leitura. Colocamos o nome de Saldão Literário, no espírito da galhofa que imperava na época, para subverter esse lugar chato que a literatura dos gabinetes muitas vezes tomava para si. Era uma continuação, em certa medida, da proposta da FreePorto, cuja primeira edição tinha acontecido no mês anterior.

No entanto, a gerência da livraria não gostou da brincadeira. Não queriam usar a expressão “saldão”. Não explicaram por quê, mas imagino que o termo deveria remeter, no imaginário dos gestores, a um público popular, alheio à “elite” que frequentava a livraria. Claro que nós estávamos fazendo uma provocação, mas eles só teriam a ganhar: aquele evento reunia escritores e escritoras que faziam parte da cena mais jovem, mas também nomes da envergadura de Jomard Muniz de Britto. 

Acabamos não realizando o evento, que teve o formato mudado para leituras simples e o fornecimento de livros a serem comprados no caixa. Lembro de ter pensado num protesto com uso do cartaz com tarjas, mas não recordo se foi adiante (se você lembra, coloque nos comentários). Mas a caretice da Cultura, naquele momento, só reforçou o que já achava: a livraria era refratária à cena cultural. Mais que isso: não compreendia seu papel como equipamento cultural, que deveria dialogar com a cena literária local e trazê-la para dentro de seus espaços. Mas agendar eventos com a Cultura era um suplício, uma humilhação, quase. Quem tratou com a gerência para realizar eventos no local, sabe do que falo. Havia sempre uma postura de “nós estamos fazendo um favor”. 

Alguns caminhos verdadeiros

Talvez o mais inteligente, por parte dessas livrarias de rede, seria criar uma relação de pertencimento com os espaços, pensando na realidade local, como a boa e velha livraria de rua fazia. Penso na Livro 7, que ocupou esse lugar em seu tempo, de locus de cultura. Dirão que o fracasso financeiro da lendária livraria de Tarcísio Pereira prova que essa coisa de pensar livraria como espaço de cultura é saudosismo vazio e inviável. Mas digo o contrário: precisamos encontrar um modelo que, por um lado, seja viável economicamente para os livreiros, mas que não perca de vista o lugar da livraria como equipamento cultural de natureza público-privada.

O mix de serviços e produtos parece ser caminho inevitável, mas a aventura dos eletrônicos da Saraiva e da Cultura, que analistas dizem ter parcela de culpa na bancarrota que enfrentaram, mostra como não se vende livros como se vende um celular ou uma tevê. Acho que os cafés acoplados são realidade, o aluguel de espaços para eventos ligados ao universo do livro ou cursos, também pode ser viável. Precisamos ajudar a pensar modelos econômicos tendo em vista que o varejo de livros no Brasil é o primo pobre das compras públicas, onde realmente está o dinheiro.

Não quero desenvolver um aprofundamento do tema. Mas meu alerta às livrarias e aos livreiros é mais um apelo: não esqueçam que amamos estar nesse espaço que vocês nos propiciam, mas não tirem o prazer de estarmos aí. Vocês não têm como competir com a terra arrasada das grandes distribuidoras on-line, como a Amazon. O que precisam é nos seduzir mais uma vez, fazer com que voltemos às suas estantes e passemos nosso tempo perambulando, conversando, trocando ideias, indo a lançamentos (com protocolos seguros, claro) e vivendo o mundo dos livros. Ajudem-nos a ajudar vocês. 

Quanto às bibliotecas falsas, tenho certeza que nenhum dos meios leitores e leitoras é adepto dessa prática. Grandes ou pequenas, estou seguro de que suas bibliotecas são honestas e, mostradas ou não no Zoom ou Google Meet, fazem parte de suas histórias de amor aos livros.  Ou não?

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References

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1 Não vou colocar links para matérias sobre isso, seguindo o conselho de  Sabrina Fernandes, do Tese Onze, em seu vídeo “Engajamento errado“, essencial para as eleições de 2022, cuja visualização recomendo
2 Aguardem novidades por aqui, e assinem o blog receber atualizações
3 Este texto do Jaime Mendes aponta questões importantes e encaminhamentos válidos.
2 Comentários
  • Rafa Monteiro
    Postado às 12:37h, 04 fevereiro Responder

    Maravilhoso, Wellington. Quanto a Livraria Cultura, ela era vista como um espaço de convivência. O luto por ela acredito que tem a ver com isso, muito mais que um espaço cultural. Não era estranho ver adolescentes e jovens sentado no chão conversando sobre os mais variados assuntos, mas com pouco consumo. Os “grandes” consumidores são do clã do desembargador da biblioteca fake. Para estas pessoas livro é comprado por metro e por quilo, não com a intenção de ler. Mas a de ostentar. Vejo isso tb com a Livraria Jaqueira que sucedeu a Cultura do Paço. É um ambiente elitista ao extremo e com preços elevados. Para os interessados em livros e com pouco dinheiro comprar na Amazon é uma saída. Mesmo sabendo que está comprando do inimigo. É o eterno caso do filme “Mensagem pra você “, para dizer o mínimo.

    • Wellington de Melo
      Postado às 14:21h, 04 fevereiro

      Pois é, tenho me preocupado com a questão da Amazon, porque a longo prazo é um tiro no pé. Tenho tentado fazer redução de danos, porque o preço e a comodidade são sedutores.

      Concordo que era um espaço de convivência, que existia “a despeito” da gestão. Obrigado pela leitura

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