Um conceito da astrofísica é muito produtivo para refletir sobre o momento que vivemos com a crise das livrarias. Sim, ela não acabou nem começou com os acordos de recuperação judicial e coisa e tal. Refiro-me ao conceito de singularidade, usado para referir-se ao ponto dentro de um buraco negro onde as leis da física perdem o sentido.
Nem a luz escapa da gravidade dentro do horizonte de eventos de um buraco negro. O mundo livreiro entrou num horizonte de eventos que não permite a alguns perceber que as normas antes aplicadas já não vigoram. Por isso, ignorar a singularidade pode atrair livrarias a um buraco negro sem volta.
Compreendê-la para adaptar-se pode ser a resposta. Há muitos exemplos do primeiro caso. Queria falar sobre um exemplo do segundo.
Nadando contra a gravidade
A Boto-cor-de-rosa, especializada em literatura contemporânea, foi fundada por Sarah Rebecca Kersley em 2015, na charmosa Barra, em Salvador. Com curadoria da crítica Milena Brito, tinha um café, com programação para aproximar o público do espaço.
Mas as contas não batiam e Rebecca decidiu, em vez de desistir, reinventar-se a seguir nadando — para longe da gravidade do buraco negro. Entendeu a tempo a singularidade.
CRISE DAS LIVRARIAS
A livraria como espaço físico precisa transformar-se em livraria enquanto potência, energia. E a Boto entendeu isso também. Se presa ao modelo tradicional, não repensaria o próprio conceito de ocupação: a livraria hoje se divide entre dois espaços coletivos em Salvador, participa de eventos e feiras, e mantém comercialização pela internet.
Em todo lugar, seu acervo e sua concepção curatorial. Inclusive, criaram também um selo próprio, o paraLeLo13S, que vai lançar neste mês seu oitavo livro, girassóis estendidos na chuva, de Louise Queiroz.
Desde a marca, que nem parece com um boto, e é azul — e não rosa, dona ministra —, até a definição como “projeto cultural” e não simplesmente livraria, a Boto-cor-de-rosa nos provoca a repensar o que parece óbvio. Isso é o avesso de um animal em extinção rumo a um buraco negro. Aprendam.
Texto publicado originalmente na coluna Mercado Editorial, do Suplemento Pernambuco, de maio de 2019.
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