Por Fellipe Torres[1]Publicado originalmente no Caderno Viver, Diario de Pernambuco, 25/11/17
Um Recife de ares distópicos é tomado por suicídios em massa, em protesto pelo “direito de estar na cidade e por uma urbanidade humana”. Feito passarinho, avoando de edifícios, cerca de 40 manifestantes abrem mão da própria vida ao colocar em prática “um último ato político”. Com narrativa entrecortada por divagações sociopolíticas, Wellington de Melo ficcionaliza acontecimentos recentes da capital pernambucana em seu segundo romance, Felicidade (Patuá, R$ 40). O lançamento será na quarta-feira, às 19h, no Texas Café Bar (Rua Rosário da Boa Vista, 163, Boa Vista).
Quase tão intrincado quanto seu antecessor, Estrangeiro no labirinto (2013), o livro coloca o leitor em meio a acampamento do Movimento Cidade Plana (MCP) – leia-se, se preferir, Ocupe Estelita -, onde personagens “renegam herança da família para defender a cidade”. Embora escrito em prosa, o texto é carregado de imagens poéticas, equilibradas entre o belo e o trágico. Exemplo disso é o momento da desocupação do lugar sob forte violência policial (referente a episódio ocorrido em junho de 2014), cujos efeitos nos manifestantes são descritos do ponto de vista de quem participa: no céu, “pombos de chumbo e acrílico”, no chão, cassetetes, escudos, projéteis: “pássaros de bafo incandescente”. Lama, sangue, gás lacrimogêneo. “A cidade avança contra seu passado, que se contorce expurgado pelo mundo, extirpado de si mesmo (…) Na primeira reunião depois da desocupação: costelas fraturadas, olho roxo, óculos e dentes quebrados”.
Bem ao estilo V de vingança (série de história em quadrinhos dos anos 1980 sobre um revolucionário versus os poderes estabelecidos em um futuro pós-apocalíptico), repete-se o mantra: “Olhem uma última vez para cima”. A frase não é referência aos céus como possível busca para a redenção, mas um convite para testemunhar os mártires do movimento fazendo o derradeiro sacrifício. Depois de picharem as letras do movimento – MCP -, saltam dos mais altos prédios da cidade (as novas casas-grandes, vistas como a representação da decadência social). Tudo transmitido ao vivo. Após o impacto, corpos são comparados a lesmas espatifadas e bagos de laranja abertos.
Interesses escusos (ou escancarados) próprios de um capitalismo desenfreado, assim como seus símbolos, são alvo da ironia fina de Wellington. Em meio ao vai e vem dos cerca de 30 personagens mencionados, estão torres azuis espelhadas (Quinta das Mangueiras, Senzala dos Albuquerque, Morada Colonial, Bosque Armorial etc), além de empresários e médicos interessados na tragédia em nome do lucro. E não somente financeiro. Em certa passagem, um abastado profissional de saúde recebe favores sexuais em troca de um envelope recheado. A cena é sutil e emblemática: “O menino branco vestido de branca primeira comunhão, sorri branca vela branca, família branca na festa branca. O menino-doutor-cavalcanti, bochechinha branca de açúcar, no colo da negra. Parecia mamãe, rosto, testa. Terá servido ao doutor-cavalcanti-pai, como sirvo agora ao filho, ajoelhado em seu tapete?”
A despeito da referência à aristocracia açucareira marcada no passado (e refletida no presente) de Pernambuco, o próprio nome do personagem faz referência a uma quadra popular desde os tempos da Revolução Praieira, no século 19: “Quem viver em Pernambuco/ não há de estar enganado:/ Que, ou há de ser Cavalcanti,/ ou há de ser cavalgado”.
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