Por Micheliny Verusnschk [1] Publicado no portal Musa Rara, em 19 de maio de 2014. Link original: http://www.musarara.com.br/decifra-me-e-te-devoro-assim-mesmo
Este livro é uma prisão. É com esta frase que o livro Estrangeiro no labirinto (Confraria do Vento, 2013), de Wellington de Melo, se inaugura diante do leitor. Uma narrativa múltipla e cindida, cujo projeto é um cárcere infinito, ao exemplo de O Jogo da Amarelinha, de Cortázar, Avalovara, de Osman Lins, e O jardim de caminhos que se bifurcam, de Jorge Luís Borges. Reverenciando e referenciando essas obras, o Estrangeiro no labirinto apoia suas estruturas sobre as possibilidades binárias provenientes do entrecruzamento entre o tarot e a cabala, método de interpretação que se baseia em estudos do psicanalista Samuel Roth e da prática mística de Arthur Edward White, cujo baralho, o conhecido Tarot Rider-Waite, de 1910, é inspiração contínua para os estudos contemporâneos da antiga arte divinatória e de autoconhecimento.
Com inúmeros narradores, também chamados de confrades ou cronistas, cenas fraturadas e/ou espelhadas, o livro (supondo-o aqui como uma entidade independente e autônoma) brinca com o leitor. Ele é o gato, e o leitor, bem, o leitor já se transformou em pasta triturada, quase digerida. Se se afirma prisão, antes de tudo é uma armadilha, num movimento espiralado prende e sufoca sua vítima num torvelinho de tensões, desdobramentos, numa babel de vozes que se misturam e se embatem, procurando o fio de Ariadne, ou, quem sabe, alguma porta de saída. Aliás, aqueles que narram foram, um dia, leitores, antes de caírem no alçapão em que o livro se converte. Ao mesmo tempo, o livro busca explicar-se a si mesmo, numa viagem meta-linguística que mistura e desordena teoria das cordas, física quântica, e os supracitados tarot e cabala. Em determinado ponto, um cronista, o de número 27, discorre:
De modo que é inócua qualquer argumentação de ordem pragmática. Passemos então à metafísica. Aceitemos por ora o disparate de que isto é realmente um livro. Ainda assim não seria uma prisão? Não estaria o leitor efetivamente preso a estas palavras? Mesmo que a rotina, a contingência dos dias ou a pobreza do estilo dos confrades as escondam em algum lugar de sua memória, enquanto nossas palavras penetram usa consciência, são servis prisioneiras de sua vontade. No entanto, não se engane: é você o aprisionado nestas viscosas camadas de linguagem.
Num roteiro imprevisível algumas portas são abertas e os mundos por detrás delas sopram uma violenta ventania. Num desses portais, um mulher pobre e viciada, com a capacidade de ver e se misturar ao passado de um matador de aluguel, conta a sua história dele (talvez aqui a frase não faça sentido, mas não é bem de sentido que se está falando). A infância desse matador se descortina, por outro lado, com as cores e texturas que muitas vezes parecem remeter ao filme Abril Despedaçado. Em outra passagem, um juiz, acusado pela mídia de homofobia ao julgar um assassinato, revela, aos poucos, a sombra monstruosa que o acompanha. Outros portais, que deixam entrever personagens históricos, cronistas desesperados, parecem ressoar e ampliar a música do relógio de Julius Heckethorn.
Para além do mecanismo (ou seria mais preciso dizer organismo, pois o livro tem algo de Pantagruel, não esquecendo que o nome do glutão personagem de Rabelais significa “tudo alterado”) em que o livro se converte, há o trabalho precioso de Wellington de Melo, orquestrando vozes, situações, focos, dando forma e vida a este ser ambíguo e monstruoso, que como Cronos nasceu para devorar seus filhos. Estrangeiro no labirinto é um jogo de vida e morte e inscreve, sem sombra de dúvida, o nome do seu autor no grupo dos grandes narradores-inventores. Um livro para se entrar e não se sair nunca mais.
1 Comentário
Pingback:Unidade - Wellington de Melo | escritor
Postado às 09:55h, 30 novembro[…] não lineares. É um erro. Eu talvez achasse isso quando escrevi meu primeiro romance, Estrangeiro no labirinto, mas hoje vejo quanta unidade há naquela algaravia de narradores. Já não acreditava tanto nisso […]