O Movimento Ocupe Estelita (MOE) começou a sua ocupação do Cais José Estelita em 21 de maio de 2014, em resposta a uma demolição ilegal de galpões de açúcar, para a construção de um projeto de torres chamado Novo Recife. A ocupação não durou muito: no dia 17 de junho de 2014, a Polícia Militar invadiu o acampamento logo pela manhã e expulsou os acampados.
O MOE ainda seguiu atuando e conseguiu, de alguma forma, diminuir os impactos do projeto original, que foi modificado pela construtora. Apesar disso, não houve como barrar a agressão à paisagem do Recife e hoje algumas das torres previstas já se ergueram diante da maré. A luta segue, em outras frentes, tentando pensar que cidade queremos para nós.
A literatura e o panfleto
Como escritor, acredito que meu papel é escrever o que aprofundará a existência de meus leitores sobre a experiência na Terra. Baita desafio, dificilmente alcançado. Mas, nesse sentido, algo que levo muito em conta é o diálogo com meu tempo e suas circunstâncias. O movimento Ocupe Estelita era uma circunstância que permeou a escrita de Felicidade, mas não a determina.
Isso porque não acredito que deva escrever panfletos, mas literatura. O que vivemos em nosso tempo nos oferece vislumbres nem sempre refletidos no real. Um evento pode ser o gerador de uma narrativa, mas ela pode ir num caminho totalmente diferente do fato gerador. É o que aconteceu com meu romance Felicidade (2017), em que parti do exagero e do insólito para recriar o Estelita e colocar em debate as contradições que nós, progressistas, colocamos para debaixo do tapete. Explico.
Enredo de Felicidade
Ademir é um auxiliar de escritório numa loja de produtos protéticos. Eventualmente, ele faz programas. Num desses, conhece Ignácio, um escritor famoso, mas decadente, com quem acaba se envolvendo emocionalmente. Ignácio, no entanto, após o término da relação, usa as histórias que Ademir lhe contava sobre seus traumas familiares e escreve um livro, em que usa todos os nomes reais.
Ademir quer se vingar de Ignácio, mas não sabe como. Na narrativa não linear o leitor vai aos poucos descobrindo que Ademir se envolveu com um grupo de ativistas contra a verticalização chamado Movimento Cidade Plana, que quer fazer um ato de protesto extremo: saltar dos prédios mais altos da cidade. A ação deveria ser transmitida ao vivo ao longo de 24h e Ademir é um dos que deveriam saltar. No entanto, vamos vendo ao longo do romance, entre idas e vindas, que ele tem outros planos em mente. Planos de uma mente que está em processo de enlouquecimento.
Felicidade e o Estelita
Resenhas escritas à época do lançamento de Felicidade logo associaram o livro ao MOE. O MCP seria uma versão do mundo invertido, que radicalizou e tornou-se uma espécie de seita, que queria promover um suicídio coletivo em nome da causa. Questões como o racismo, o homofobia e transfobia também foram mostradas como pontos de tensão do romance. Numa época em que livros vêm com aviso de gatilho, Felicidade tem um arsenal pronto a estourar na cara dos leitores e leitoras.
Felizmente, as pessoas em torno do movimento compreenderam que não havia ali nenhuma crítica ao MOE. De fato, embora parta de uma situação real, ou seja, de um movimento que luta contra a gentrificação, não há qualquer intuito no livro de tratar das pautas da cidade. Há, sim, uma reflexão sobre o adoecimento mental, sobre o direito à privacidade, sobre como movimentos coletivos ignoram motivações pessoais, sobre o remorso e a culpa. Essas reflexões aparecem atravessadas pelo personagem Ademir.
Ademir e o Movimento Cidade Plana
Ademir é um personagem intrigante, que me desafiou ao longo do processo de escrita. Isso porque na primeira versão, era claramente uma vítima de Ignácio, um escritor que se aproveitou de sua história dolorosa para ter sucesso. Pouco a pouco, o personagem foi se apresentando a mim como uma espécie de sociopata, um predador que sabe como se aproveitar das situações para sobreviver. Tornou-se um personagem muito mais interessante.
A entrada de Ademir para o MCP foi inspirada em minha observação do acampamento do MOE. Ali, percebi que havia muitas pessoas que buscavam muitas coisas diferentes, nem sempre centradas na luta original de repensar a cidade. O acampamento era, também, uma forma de viver liberdades, e isso era latente pelo impacto que teve e pelas manifestações culturais em seu entorno.
As contradições do Estelita
Ao mesmo tempo, no acampamento as contradições da sociedade se viam replicadas em microescala. Poucos falam, mesmo hoje, sobre a homofobia, o racismo ou o classismo que existia no acampamento. Na época em que surgiu Ademir, pensei como seria introduzir um psicopata no meio do movimento e o coloquei para brincar. Ademir, como um leitor me confidenciou, “é perigoso”, alguém de quem se deve ter medo.
Mas Ademir era muito inteligente e via como era, de alguma forma, massa de manobra que se deixava levar até que se alcançasse seu objetivo. Há uma fala sua que revê, em certo modo, a falácia da democracia racial: “Outra vez a conciliação. Começo a achar que vocês realmente acreditam nisso”. Os líderes do MCP esperam que Ademir siga o plano, que é saltar de uma das torres mais altas e filmar tudo ao vivo. Ademir decidiu saltar da torre em que Ignácio vivia, para “marcar” o lugar com seu suicídio. Ou será que não?
Os segredos de Ademir
Gosto quando o romance fica em aberto e Felicidade tem essas brechas, principalmente porque é um romance muito fragmentário, cuja forma emula, em certa medida, o processo de ruína da mente de Ademir. Ele não é apenas um psicopata, mas alguém cujo passado deixou traumas insanáveis. Um personagem complexo, que deve despertar pouca empatia dos leitores, quando compreendem quem ele realmente é. Mas ele sofre com esse passado oculto.
Esses segredos vão sendo revelados ao leitor em flashes, que mostram tanto seus crimes como aqueles dos quais foi vítima e o transformaram no que é. Se soubessem com quem estavam se metendo, os integrantes do MCP pensariam duas vezes antes de querer Ademir por perto.
Apolitização como projeto
Ao mesmo tempo, há outras camadas para compreender Ademir. Ele representa uma classe proletária apolitizada que se envolve em movimentos por objetivos pessoais. Não há em Ademir, como veremos, verdadeiro compromisso pela causa do MCP. O que o move é a vingança contra Ignácio e sua culpa pelo que fez (não darei tantos spoilers revelando o que diabos em ele fez). Contextualizo.
Felicidade é lançado em 2017, um ano após o golpe parlamentar que tirou a presidente Dilma Roussef do poder. Hoje, sabemos que as jornadas de junho de 2013 foram o estopim utilizado pelas forças que queriam tomar o poder para manobrar as massas. As eleições de 2018 provaram que o buraco era ainda mais embaixo, e que se o campo progressista não compreender suas bases e não as capacitar politicamente, o jogo sempre seria perdido. Vencemos por pouco em 2022. Ademir era um sintoma, mais que uma doença, que ainda prolifera pelo país.
Nova edição de Felicidade
Enfim, nesta data importante para a luta política pela memória da cidade, lembro da luta pelo direito à memória privada que Ademir trava no livro. O direito de lidar com seus monstros à sua maneira. Claro que nem sempre, quase nunca conseguimos, e isso faz de Ademir mais um de meus personagens trágicos.
Felicidade está esgotado, mas vai ganhar uma nova edição pela Cepe Editora, que publicou meu último romance, Emilio. O contrato já foi assinado e aproveito este texto para dizer a vocês que essa nova edição deve contar com mudanças com relação à primeira. Se você leu o livro, vai ter que reler. Prometo que não vai se arrepender. Deixe seu comentário para eu saber que também está animado como eu.
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