Afirma Pereira, de Antonio Tabucchi (1943-2012) é um romance que narra a trajetória de Pereira, um jornalista decadente de um “jornal vespertino independente” recém inaugurado na Lisboa que via a ascensão da ditadura salazarista. Viúvo, de meia-idade, Pereira se ocupa de sua saúde frágil, de dirigir página cultural desse jornal, e de conversar com o retrato de sua mulher morta.
A vida de Pereira se transforma quando ele conhece Monteiro Rossi, um jovem freelancer contratado por ele para escrever os obituários antecipados de grandes escritores. No entanto, Rossi entrega textos que conflitam com os interesses do jornal, elogiando autores que vão contra o regime fascista. O fato, embora incomode Pereira, não o leva a demiti-lo. A partir daí, o romance mostra a transformação do apático Pereira em alguém politicamente mais consciente.
Dois aspectos do romance me chamaram a atenção: a forma enxuta como Tabucchi conduz a narrativa, com uma rica utilização de motivos para marcar a transformação da personagem, bem como impor um ritmo ao romance; e a maneira como, de maneira sutil, o italiano se vale de elementos da teoria do monomito do antropólogo Joseph Campbell, para estruturar seu texto. Começo este breve artigo por esse segundo aspecto.
A jornada de Pereira
O romance de Antonio Tabucchi pode ser analisado à luz da jornada do herói de Campbell. Trata-se de uma estrutura narrativa que descreve as etapas comuns de uma aventura mitológica, em que um herói sai de seu mundo cotidiano, enfrenta desafios e provações, aprende lições, conquista uma vitória e retorna transformado. De forma grosseira, essa jornada se divide em três seções: a partida, a iniciação e o retorno. Vejamos como essas seções se aplicam ao romance de Tabucchi:
A partida
Pereira é um jornalista viúvo, de meia-idade, que vive em Portugal, na década de 1930, sob a ditadura salazarista. Ele escreve efemérides literárias e traduz contos para a página cultural de jornal vespertino Lisboa, emprego claramente medíocre, depois de ter trabalhado 30 anos como cronista policial, cargo que tampouco parece grande coisa.
Esse é o seu mundo comum, onde ele se sente confortável e seguro, e é o ponto de partida do romance. Podemos dizer que a amizade entre Pereira e Rossi é o evento que possibilita a entrada no mundo especial, ou seja, aquilo que dá início à verdadeira jornada do protagonista. É o que Campbell nomeia de chamado à aventura.
A partir disso, Pereira se sente atraído pelo talento e pela ousadia do jovem Rossi, mas também teme as consequências de publicar seus textos. Ele recusa o chamado, tentando se manter neutro e distante dos problemas políticos. No entanto, recebe a ajuda de um mentor, o doutor Cardoso.
Cardoso é um jovem médico que lhe explica a teoria da transmigração das almas, segundo a qual as pessoas podem mudar de personalidade ao longo da vida, o que possibilita que abandone o passado e abrace seu novo eu. O doutor Cardoso incentiva Pereira a seguir sua consciência e a se engajar na luta pela liberdade.
A iniciação
Pereira decide aceitar o chamado e se envolver com o grupo militante revolucionário a serviço dos republicanos espanhóis, do qual Monteiro Rossi faz parte. Pereira atravessa o limiar, saindo de sua zona de conforto e entrando em um mundo desconhecido e perigoso. Nesta etapa, enfrenta vários testes, aliados e inimigos: a namorada de Monteiro Rossi, Marta, que o convence a ajudar o casal; o diretor do jornal, que o pressiona a seguir a linha editorial oficial; a zeladora, que julga ser uma informante da polícia; e o agente da polícia política, que o interroga e o ameaça.
Há personagens secundários que também servem de aliados, como o garçom Manuel, do Café Orquídea, onde Pereira costuma almoçar e que lhe fornece informações e apoio, e o já mencionado doutor Cardoso. Mas há também o padre franciscano António, que lhe dá conselhos e conforto, embora seja, em certa medida, um antagonista da força de mudança que representa doutor Cardoso.
Uma nota sobre o padre António: personagem contraditória, apesar de criticar a “mudança de personalidade” de Pereira, acusando-o de herético, o padre tem inclinações progressistas. Em uma cena, quando comenta as filiações partidárias de escritores, dá a impressão de que ali, Tabucchi plantou uma espécie de alter-ego que faz uma ponta, como nos filmes de Hitchcock ou de Tarantino. A coincidência com seu nome parece ser uma piscadela do autor.
A provação suprema ocorre quando o protagonista presencia a morte Monteiro Rossi por supostos membros da polícia política, que invadem seu apartamento, interrogam e torturam o militante. Rossi ali se abrigara depois de fugir do Alentejo, onde tentava recrutar soldados para as Brigadas Internacionais que lutavam na Espanha contra Franco, e trouxe passaportes falsificados, feitos por seu primo preso.
Neste ponto, já perto do fim do romance, Pereira sente uma profunda dor e revolta, mas também uma determinação de honrar a memória do jovem. Ele decide publicar um necrológio de Monteiro Rossi, denunciando sua morte nas mãos de supostos membros da polícia, e o faz graças a um estratagema com o doutor Cardoso, que se passa por censor, autorizando a publicação junto ao tipógrafo do jornal. Essa é a sua recompensa, o seu ato de coragem e rebeldia.
O retorno
Neste ponto, Tabucchi opta por uma solução que grandes romances nos legam: um final relativamente aberto. Pereira não volta, de forma explícita, a seu mundo comum inicial, pois diante da publicação do necrológio, só lhe restaria a demissão e, quem sabe, a prisão. Assim, na última cena do romance, Pereira escolhe um dos passaportes falsificados que Rossi escondera em seu apartamento, e “afirma” que sairá do país.
Aqui, teríamos, na estrutura tradicional de Campbell, a travessia do limiar de volta, ou o retorno com o elixir: o herói leva consigo o conhecimento e a experiência adquiridos na sua jornada. Ele se tornaria um mestre de dois mundos, capaz de integrar sua vida pessoal e sua consciência política. O fato é representado por sua astúcia em, por um lado, enviar um conto de Castelo Branco para o diretor do jornal, para disfarçar sua intenção de, na verdade, publicar a denúncia.
No entanto, não sabemos se Pereira conseguiu fugir do país, já que essa cena não é narrada. Na jornada do herói, haveria ainda uma última provação, no caminho de volta, chamada de ressurreição, onde o protagonista precisa provar que pode regressar a seu mundo, modificado. Não há essa etapa no romance de Tabucchi, ou será que ela fica fora da narrativa, mas ainda está lá? Será que Pereira consegue mesmo sair do país com o passaporte falso e abraça seu novo eu, agora mais politicamente consciente?
Aqui, entra o segundo aspecto que me chamou a atenção: a narração enxuta de Tabucchi e como ela marca a transformação da personagem e impõe um ritmo que dialoga com o tema. Mais que isso, como um leitmotiv narrativo pode ser a chave de interpretação para uma obra.
Forma, tema e motivos em Afirma Pereira
A transformação da personagem principal se dá por sua tomada de consciência política e existencial, que o leva a sair da sua zona de conforto e a se engajar na luta pela liberdade. Essa transformação é gradual e complexa, e envolve vários fatores, como a mudança de sua dieta e a relação com a foto da esposa.
A dieta e a personalidade
A dieta de Pereira é um símbolo da sua condição física e mental, que reflete o seu estado de espírito. No início da história, ele é obcecado pela morte e pela ressurreição da carne, e se alimenta de forma pouco saudável, consumindo limonadas com muito açúcar e omeletes com ervas aromáticas. Esses hábitos alimentares contribuem para a sua obesidade e para a sua fragilidade cardíaca, que o tornam vulnerável e passivo.
No entanto, ao longo da narrativa, ele vai mudando a sua dieta, passando a comer frutas, legumes, peixes e carnes magras, seguindo as recomendações do doutor Cardoso, mesmo que de forma vacilante, como sua integração na luta militante. Essa mudança representa a sua melhora física e psicológica, que o tornam mais forte e ativo. Em paralelo, Pereira vai também se afeiçoando as ideias de Rossi e Marta e vai mudando o que o doutor Cardoso chamou de seu “eu hegemônico”.
A foto da esposa e o passado
A relação com a foto da esposa é outro símbolo da sua condição emocional, que reflete o seu luto e a sua solidão. Pereira conversa com o retrato da mulher morta, como se ela fosse a sua única companhia e confidente. Ele vive preso ao passado, sem se abrir para novas experiências e relações. No entanto, ao longo da narrativa, ele vai se distanciando da foto, passando a se relacionar com outras pessoas, como Rossi, Marta, o doutor Cardoso e o padre António.
No começo da narrativa, essas conversas com a foto sempre terminam com a frase “o que se há de fazer?”, uma frase de resignação, que aos poucos vai sendo abandonada por Pereira, à medida que ele se transforma. A última vez que se dirige à foto, não é bem uma conversa, mas um silêncio vicário. Ao deixar o apartamento, quando foge com passaporte falso, ainda leva a foto da mulher. É um símbolo de que, ainda que mantenha uma relação diferente com seu passado, não o abandonou.
De qualquer forma, esse distanciamento representa a sua superação do luto e a sua abertura para o presente e o futuro, que o tornam mais sociável e solidário. Não parece ser aleatório que o autor tenha escolhido como esconderijo dos passaportes falsificados um lugar atrás da foto da mulher morta. O passado, representado pela foto, protege o futuro, os passaportes falsos que garantiriam uma nova vida a Pereira.
“Afirma Pereira” como motivo de Afirma Pereira
Claudio Guillén afirma que forma e tema não devem se dissociar. As escolhas formais de Tabucchi, por isso, não podem ser ignoradas, uma vez que são determinantes para a compreensão da narrativa. A primeira coisa que deve chamar a atenção do leitor é a repetição da frase que dá título ao livro, “afirma Pereira”. Ela aparece mais de mil vezes ao longo do texto, normalmente no início ou no fim dos parágrafos, às vezes com pequenas variações, como “afirma ter dito Pereira” ou “Pereira afirma”, e tem várias funções e significados.
“Afirma Pereira” é um recurso narrativo importante no romance, pois funciona como um leitmotiv, um elemento recorrente que dá unidade e coerência à obra. Pode indicar, numa primeira leitura, o ponto de vista narrativo, que é o de Pereira. Por outro lado, sugere que o romance é um testemunho, um depoimento, uma confissão ou uma defesa de Pereira, que afirma a sua versão dos fatos, a sua verdade, a sua voz. Mas seria só isso mesmo?
O narrador de Afirma Pereira
Uma pergunta importante é sobre a identidade do narrador. Sendo uma narrativa em terceira pessoa observadora, com foco limitado, aparentemente não participante da história, parece uma pergunta irrelevante. Parece, apenas, pois imaginar quem é o narrador é um dado importante. Para refletir sobre isso, é preciso analisar o contraste que Tabucchi faz entre o tempo da narração e o tempo desta frase.
A narrativa é toda feita no passado, mas a frase-leitmotiv é dada no presente. O uso do deste tempo, apenas nesta frase, é uma relevante: sugere que o narrador, apenas neste contexto, dirige-se a um narratário deslocado do contexto da narração. E que contexto é esse? Lembremos: a ação do romance se dá no verão de 1938, num contexto histórico marcado pela ditadura salazarista em Portugal e pelo fascismo na Europa.
Outra informação formal importante é a dicção do narrador. Deliberadamente monótona e, por vezes, repetitiva, com um uso de verbos dicendi eventualmente desnecessários, como “Aqui é Pereira, disse Pereira”, essa escolha parece conferir à narrativa um aspecto burocrático. Um leitor desavisado creditaria a uma má escrita, mas acredito que seria subestimar a técnica de Tabucchi.
Afirma Pereira: final aberto?
Na cena final não há confirmação de que Pereira tenha saído do país depois de publicar o necrológio de Rossi, cujo cadáver permaneceu em seu apartamento. Apesar disso, a frase “afirma Pereira” pode ser entendida não apenas como o testemunho metafórico que o romance representa. Seria uma tomada de depoimento do próprio Pereira, a posteriori.
É, assim, coerente com a atmosfera, com o contexto histórico e com a jornada possível deste quase herói Pereira. Um herói que reluta boa parte do romance a entrar na jornada, não poderia ter um deus ex machina tão fácil no final. Seria muito satisfatório, mas demasiadamente inocente.
Claro: esperamos sempre que o herói se saia bem, mas nem sempre é assim, e o final semiaberto de Tabucchi fica martelando em nossa cabeça, como a frase leitmotiv que plantou e todos os 23 capítulos de seu magnífico Afirma Pereira. Uma aula de narração que todo escritor e toda escritora deveriam ler.
2 Comentários
Marcondes FH
Postado às 10:03h, 26 fevereiroLembrou-me bastante A Mãe de Gorki.
Excelente texto, Sr. Emilio.
Nivaldo Tenório
Postado às 13:16h, 08 janeiroexcelente resenha. não consigo imaginar o autor se valendo da jornada do herói, mas se o fez, é possível que tenha agido de modo inconsciente. caso tenha sido assim, mostra a força da estratégia teorizada por Campbell.