Qualquer texto tem múltiplas camadas de significado, e em um texto de ficção isso se dá de forma mais intensa. Se os eventos narrados e as descrições são a primeira forma de acessar os significados de um texto, a própria tessitura da gramática pode ser manipulada pelo autor ou pela autora para construir sentidos. Neste post falo brevemente sobre como criar uma camada de sentido valendo-se da sintaxe, imaginando o narrador como linguagem.

Gosto de usar dois exemplos para mostrar como a sintaxe de um narrador ou personagem pode revelar estados mentais. Em minhas aulas, costumo usar os começos de O som e a fúria, de William Faulkner, e Graça infinita, de David Foster Wallace. Em ambos os trechos, temos narradores que compartilham uma condição, como veremos a seguir. Para acompanhar, talvez você precise ter acesso aos textos. Coloco aqui um link para o texto de Faulkner e outro para o do Foster Wallace. Adianto que o artigo pode conter spoilers.

O narrador é sua linguagem

Uma das coisas mais difíceis é chegar a uma voz de narrador que consiga dar conta da complexidade da alma humana e, ao mesmo tempo, nos sirva para ser o condutor de nossa narrativa. Às vezes, queremos que essa voz seja didática e neutra, e que deixe os eventos se desenrolarem sem grande sobressalto. Mais ou menos como mestres de cerimônia de eventos governamentais. Quanto menos barulho, melhor.

Particularmente, gosto de livros cujos narradores sejam únicos, que mostrem a que vieram. Essa foi minha busca com os múltiplos narradores de meu primeiro romance, Estrangeiro no labirinto, como com o violento Ademir, de Felicidade. Claro que quando você utiliza um narrador em primeira pessoa isso faz mais sentido. Se ele é narrador-personagem, mais ainda. Gosto de narradores que participam ou se envolvem com a ação. Talvez uma exceção que confirme a regra seja o Rodrigo S.M., de A paixão segundo G.H., mas talvez seja um caso controverso para servir de exemplo.

De toda forma, o trabalho de criar a voz de um narrador-personagem ou narrador-protagonista é extremamente importante. Ele não servirá apenas para delinear a personalidade daquele que conta a história, mas dará forma ao tom mais amplo que você quer dar à narrativa. Um narrador irascível terá atitudes distintas diante dos eventos narrados que um narrador irônico. Um narrador ingênuo deve render estratégias interessantes de ocultação de dados, mas alguém impulsivo também. Há várias maneiras de se alcançar o mesmo objetivo.

A condição do narrador

Nos exemplos que selecionei, temos dois narradores que compartilham uma condição. Pelo menos na época de Faulkner, essa condição não era conhecida como hoje e recebia nomes diferentes. Isso, inclusive, justifica em parte a escolha do título do livro, como veremos adiante. Poderíamos classificar tanto Benjamin Compton, o Benjy de O som e a fúria, como Halold Incandenza, o Hal de Graça infinita, como personagens que estão no que hoje conhecemos como espectro autista.

Os transtornos de espectro autista (TEA= “engloba diferentes condições marcadas por perturbações do desenvolvimento neurológico com três características fundamentais, que podem manifestar-se em conjunto ou isoladamente. São elas: dificuldade de comunicação por deficiência no domínio da linguagem e no uso da imaginação para lidar com jogos simbólicos, dificuldade de socialização e padrão de comportamento restritivo e repetitivo” [1]1. Transtorno de espectro autista (TEA). Drauzio Varella. Acesso 1 mar. 2020.

Como desenvolver uma voz que seja crível ao representar uma condição tão singular e diversa, já que o TEA tem uma diversidade grande de características? Mais que isso: como fazê-lo sem que se caia na caricatura? Como evitar a imitação que se pede nos maneirismos e deixa de lado a essência dessa personagem ou desse narrador. Como concentrar-nos naquilo que o faz seguir caminhando sobre a Terra? Nos dois exemplos que trago, acho que isso é alcançado com maestria.

O Benjy de Faukner

Lá vem spoiler. A primeira parte de O som e a fúria é narrada por um dos irmãos da disfuncional família Compton, em torno da qual giram os eventos do romance, em diferentes épocas de suas vidas. A escolha de Faulkner por abrir seu romance com Benjy, batizado de Maury, nome de seu tio, mas rebatizado como Benjamin quando sua mãe entende sua condição, é decisiva para o tom do livro e justifica, em parte, o título.

Obviamente sabemos da referência a Macbeth que motiva o título. Na cena 5 do Ato 5, quando Macbeth sabe da morte da rainha, pronuncia uma de suas falas mais famosas: A vida não é nada além de uma / sombra que anda, um pobre ator que / pavoneia e lamuria seu instante / no palco e depois não é mais ouvido: / é um conto contado por um idiota, / cheio de som e fúria, significando nada. [2]2. Macbeth, Ato 5, cena 5. Tradução de Arthur Malaspina

O termo “idiota”, tanto na época de Shakespeare como na de Faulkner, era usado para descrever pessoas com deficiência mental. Mesmo que politicamente incorreto hoje, é essencial que tenhamos essa informação para compreender por que a primeira parte do romance de Faulkner é uma verdadeira barreira de som e fúria, narrada por todos os sentidos simultâneos de Benjy.

Autismo e gramática

Não há filtro e todas as sensações chegam ao mesmo tempo na mente de um autista, causando algo como um curto circuito. É assim que ele narra, em tempos sobrepostos e simultâneos, o que causa um desconforto no leitor de primeira viagem. Com efeito, se você consegue atravessar essa primeira tempestade sensorial que é Benjy, se encontrará com outros narradores mais “dóceis” adiante, ainda que estejamos diante do irmão suicida e do outro psicopata.

Percebe-se que Faulkner optou por um caminho diferente de Joyce em seu Ulysses, livro publicado poucos anos antes de O som e a fúria e que com certeza o inspirou. Enquanto Joyce deixa o fluxo da consciência operar em grau máximo no monólogo final de Moly Bloom, Faulkner não perdoa e já abre o livro desnorteando seu leitor.

Mas como isso se reflete na linguagem de Benjy? Leia o começo do texto e vamos analisá-lo:

Do outro lado da cerca, pelos espaços entre as flores curvas, eles estavam tacando. Eles foram para o lugar onde estava a bandeira e eu fui seguindo junto à cerca. Luster estava procurando na grama perto da árvore florida. Eles tiraram a bandeira e aí tacaram outra vez. Então puseram a bandeira de novo e foram até a mesa, e ele tacou e o outro tacou. Então eles andaram, e eu fui seguindo junto à cerca. Luster veio da árvore florida e nós seguimos junto à cerca e eles pararam e nós paramos e eu fiquei olhando através da cerca enquanto Luster procurava na grama.

Sintaxe truncada

Em primeiro lugar, temos enunciados curtos, com uma sintaxe quase que infantilizada, em que as elipses são evitadas e, por isso mesmo, acontecem repetições que parecem estranhas a um falante médio. Perceba que não há preocupação com recursos de coesão lexical como a sinonímia (o uso do verbo “tacar” é o exemplo deste trecho). Apesar disso, o uso do padrão, no que diz respeito à concordância verbal e nominal é claro, o que também é consciente.

Isso porque Faulkner opta por escolher alguns aspectos da linguagem para representar essa voz de um deficiente mental. Ele não tenta imitar pela caricatura, mas faz um trabalho de criação a partir da escolha de determinados aspectos (sintaxe crua, eliminação das elipses, repetições) em detrimento de outros. Na fala de Luster, por outro lado, ele se aproxima da variedade do inglês falado no Sul dos Estados Unidos por uma pessoa de pouca escolaridade, mas esse é tema para outra discussão.

De toda forma, a voz de Benjy se ergue nessa catedral de Faulkner como uma voz singular, graças a seu poder de manipular a linguagem em camadas mais profundas, para além das pistas datas pelas ações das personagens, como por exemplo quando Luster reclama como Benjy por ser um adulto de trinta e três anos chorando, o que é uma pista para sua condição, mas que não tem o mesmo impacto que a muralha de som e fúria que Faulkner levantou, tijolo a tijolo, na sua obra-prima.

O Hal de Foster Wallace

No começo de Graça infinita, estamos diante de uma cena curiosa: o adolescente Hal Incandenza está diante da banca de admissão da Universidade do Arizona para uma avaliação, visando seu ingresso na instituição. Ele está acompanhado de seu tio Charles e de um egresso da Universidade, o sr. deLint. A junta é composta por um grupo que nos é apresentado como hostil pelo narrador: os Gestores de Seleção, Assuntos Acadêmicos, Assuntos Esportivos.

Hal é um tenista de alto rendimento e super-dotado, com extrema erudição mas que desde os primeiros momentos notamos ter algum transtorno que dificulta sua interação social. Todas essas pistas são dadas já três primeiros parágrafos:

Estou sentado num escritório, cercado de cabeças e corpos. Minha postura está conscientemente moldada ao formato da cadeira dura. Trata­-se de uma sala fria da Administração da Universidade, com paredes revestidas de madeira e enfeitadas com Remingtons, janelas duplas contra o calor de novembro, insulada dos sons administrativos pela área da recepção à sua frente, onde o Tio Charles, o sr. deLint e eu tínhamos sido recebidos um pouco antes.

Eu estou aqui.

Três rostos ganharam nitidez logo acima de blazers esportivos de verão e meios­-windsors do outro lado de uma mesa de reunião envernizada que reluzia sob a luz aracnoide de uma tarde do Arizona. São os três Gestores — de Seleção, Assuntos Acadêmicos, Assuntos Esportivos. Não sei qual rosto é de quem.

Exuberância descritiva

Hal descreve detalhadamente, ao longo de oito páginas, as interações dentro dessa admissão, incluindo a dúvida dos gestores sobre a autoria dos ensaios escritos no ensino médio por ele, a malandragem de seu tio e a tentativa que eles não percebessem o transtorno do jovem e a incapacidade deste de se expressar minimamente. Uma das sequências mais interessantes é quando Hal faz um esforço enorme para sorrir, mas sua tentativa é interpretada pelos interlocutores como uma careta.

Há um silêncio. DeLint se reacomoda contra os painéis da parede e recentra­liza seu peso. O meu tio sorri largo e ajeita a pulseira ajeitada do relógio. 62,5% dos rostos da sala estão voltados na minha direção, com uma agradável expectativa. O meu peito está saltando como uma secadora cheia de sapatos. Eu componho o que pretendo que seja visto como um sorriso. Eu me viro pra lá e pra cá de leve, como que dirigindo a expressão a todos os presentes.

Há um novo silêncio. As sobrancelhas do Gestor amarelo se circunflexam. Os dois outros Gestores olham para o Diretor de Redação. O técnico de tênis foi para a ampla janela, passando a mão na parte de trás da cabeça de cabelo raspado. Tio Charles alisa o antebraço acima do relógio. Sombras curvas e nítidas de palmas se movem um pouco sobre o brilho da mesa de pinho, tendo como sua lua negra a sombra da única cabeça.

“Tudo bem com o Hal, Chuck?”, pergunta o Assuntos Esportivos. “Parece que o Hal... bom, parece que ele fez uma careta. Ele está com alguma dor? Você está com alguma dor, meu filho?”

Sintaxe autista?

Wallace segue um caminho totalmente oposto a Faulkner para representar seu asperger super-dotado. Hal tem uma sintaxe complexa, com preferência por enunciados longos e parágrafos enormes. Assim como a barreira de sensações simultâneas de Benjy, essa sintaxe exuberante também é cansativa para o leitor que não compreenda os objetivos do autor (e mesmo para os que compreendam, vai).

Apesar disso, a realidade também é apresentada de forma fragmentária, com elementos que se sobrepõem (cabeças, blazers, quadros, fisionomias), mas que não compõem um frame identificável e facilmente interpretável para uma pessoa neurotípica. A dificuldade de interpretar ou performar expressões faciais é, com efeito, uma das características marcantes do TEA. Wallace consegue, por meio da linguagem, sem usar as palavras “autista” ou “autismo” nenhuma vez, representar essa condição.

O caçador de mariosas (bônus)

Esses dois exemplos são significativos para mim. Isso porque eu também tive que buscar uma forma de representar uma voz de um narrador como linguagem, uma linguagem que não existia. Isso me aconteceu não com um romance, mas com um livro de poemas. Em O caçador de mariposas, criei um diálogo poéticos entre um pai e seu filho autista não-verbal. Um diálogo que nunca aconteceria na vida real, apenas possível na literatura.

Apesar de o livro representar uma experiência pessoal, não havia como buscar referente de como criar essa voz e minha opção passou não pela sintaxe, mas pelos conhecimentos de neurociência e linguagem. Sabemos que, mesmo embaralhadas as letras de uma palavra, se preservadas a primeira e a última, a leitura é possível. Essa foi a forma que escolhi para representar a fala silenciosa de meu filho, essa fala que inventei para me dizer umas verdades que eu precisava ouvir.

Enfim, cada autor ou autora precisa descobrir os mecanismos que utilizará para alcançar seus objetivos e a busca por um efeito passar por soluções e ferramentas muito diversas. O importante é que essa voz sirva para você e possibilite o diálogo com o leitor. Por mais tortuoso que seja o caminho a ser seguido, por mais peças que o quebra-cabeças tenha para que, no final, o quadro faça algum sentido para o observador, a linguagem é o mecanismo que você precisa entender e dominar.

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References

References
1 1. Transtorno de espectro autista (TEA). Drauzio Varella. Acesso 1 mar. 2020.
2 2. Macbeth, Ato 5, cena 5. Tradução de Arthur Malaspina
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