Uma polêmica em torno das matérias exibidas no dia 17/05 na Rede Globo e transmitidas pela Rádio CBN [1. Este artigo foi publicado em uma versão reduzida no Jornal do Commercio, na seção “Opinião”, no dia 23 de junho de 2011]. As matérias fazem referência a trechos do capítulo 1 do livro de Língua Portuguesa Por uma vida melhor, de adotado pelo MEC para o ensino de jovens e adultos (EJA). Segundo os jornalistas, claramente tendenciosos em suas falas, e alguns entrevistados, o conteúdo do livro atentava contra a “unidade da língua portuguesa” (SIC), representava “uma inversão de valores”.
Em nota oficial, a Academia Brasileira de Letras diz “estranhar certas posições teóricas dos autores de livros que chegam às mãos de alunos dos cursos Fundamental e Médio com a chancela do Ministério da Educação”. Nesse último caso, a ABL critica a confusão que se faz entre gramática normativa e descritiva e considera um erro a adoção de uma didática que prevê o uso da “linguística sincrônica com preocupações normativas”.
Aqui, elevamos um pouco mais o diálogo: considerar a língua como um sistema estanque, como simples estrutura a ser “preservada” e “cultivada” é um equívoco igualmente grave. Não só porque vai contra a natureza mutável de todas línguas, mas porque também remete a outro mito antigo, o da ‘unidade linguística’ do Brasil. Ou vamos enterrar de vez as línguas indígenas faladas em território nacional (cerca de 274 identificadas até hoje)?
Variação linguística e preconceito
Abordagens “sincrônicas” podem conviver com contraste normativo, ao contrário do que acreditam os senhores da ABL, que devem estar longe da sala de aula há algum tempo. Utilizar a variante do aluno ou que “normalmente se fala” como um ponto de partida é completamente válido didaticamente para mostrar os contrastes com o padrão, nosso objeto de estudo, mas não o único objeto de análise. Não se pode, no entanto, como fazem alguns professores, ridicularizar o que chamam de “português errado”, ou de “gente sem instrução”, ou de “fala de pobre”. Eis o verdadeiro debate que se trava a partir desta polêmica.
A autora do livro se preocupa em advertir que é preciso que o falante entenda que sua variedade não é errada, mas que para ter acesso a certas instâncias de poder (ou ter “ascensão social”, como falam os imortais da ABL em sua nota) é preciso dominar a norma culta. Leia-se, se não, o trecho a seguir, de uma lucidez incrível, extraído do mesmo capítulo do livro criticado, mas não divulgado pela mídia:
As classes sociais menos escolarizadas usam uma variante da língua diferente da usada pelas classes sociais que têm mais escolarização.
Por uma questão de prestígio — vale lembrar que a língua é um instrumento de poder —, essa segunda variante é chamada de variedade culta ou norma culta, enquanto a primeira é denominada variedade popular ou norma popular.
Contudo, é importante saber o seguinte: as duas variantes são eficientes como meios de comunicação. A classe dominante utiliza a norma culta principalmente por ter maior acesso à escolaridade e por seu uso ser um sinal de prestígio. Nesse sentido, é comum que se atribua um preconceito social em relação à variante popular, usada pela maioria dos brasileiros.
Esse preconceito não é de razão linguística, mas social. Por isso, um falante deve dominar as diversas variantes porque cada uma tem seu lugar na comunicação cotidiana. (grifo nosso) [2. Por uma vida melhor. São Paulo: Global, p. 12]
Ora, fica claro que a autora se posiciona como Sírio Possenti, para quem o papel da escola é sim ensinar o padrão, a variedade prestigiada. O falante competente é um poliglota em sua própria língua. A única ressalva que se faz é a afirmação de que as duas formas são meios ‘eficientes de comunicação’, pois isso está condicionado à situação enunciativa. Por exemplo, imaginem um rubro-negro sofredor como eu na final do estadual pedindo um churrasquinho (de galinha, não de boi!) a um vendedor na entrada do estádio. Eu diria, como um bom recifense, algo como “Aí mô vei, vê um churrasquinho aí!”. Mas para o Renato Machado, que apresentou no Bom Dia Brasil uma das matérias que reverberaram a polêmica tratada aqui, talvez eu devesse dizer: “Por obséquio, o senhor poderia dar-me um de seus quitutes para que possa deleitar-me nas arquibancadas assistindo a esse maravilhoso espetáculo do desporto nacional?” Tenha paciência.
Várias línguas numa só
Na matéria do Bom-Dia Brasil que citei, o jurado do soletrando, digo, professor de português Sérgio Nogueira se mostra irritado com essa tal linguística, que considera que não existe erro na língua, mas apenas usos adequados ou inadequados:
O que me irrita mais nessa história é que se fala tanto em preconceito e discriminação, mas acho que a discriminação maior é acreditar que a criança é incapaz de aprender plural e concordar verbo com sujeito. O ‘Soletrando’ [quadro do ‘Caldeirão do Huck’] está provando isso. Crianças são capazes de aprender questões ortográficas mais complexas. [3. Programa Bom-Dia Brasil, Rede Globo, 17 de maio de 2011.]
Sérgio Nogueira confunde alhos com bugalhos: primeiro, o livro em questão nem é para crianças, como já se afirmou no começo deste artigo. Tenho alguma dúvida se leu o capítulo completo antes de prestar sua consultoria para o programa. Segundo, a questão não tem nada a ver com ortografia, já que se está falando sobre o registro oral em variedades não-padrão.
Mas ignorando o “assessor linguístico” da Globo, passemos aos fatos: o que se chama de “português correto” é apenas uma das variedades da língua, que possui prestígio entre os seus falantes por ser, historicamente, a variedade de uma determinada elite social, econômica e cultural.
O jornalista Adalberto Piotto, demonstra em um trecho da entrevista da Rádio CBN à Dra. Vera Masagão Ribeiro, do instituto responsável pela elaboração do livro, que não entende o conceito de “variedade prestigiada”: quando a professora faz uma média ao dizer que os radialistas da CBN usam essa variedade, ele faz a ressalva de que apenas usam o famigerado “português correto”.
Competência linguística
Um falante competente em uma língua não é simplesmente o que sabe usar o padrão (aquele que desinformados como os apresentadores da Globo chamaram de “português correto”), mas que é capaz de decidir quando ou não usá-lo. E o livro criticado afirma isso categoriamente, em um trecho não divulgado pelas matérias da Globo e CBN. Se não, leia-se: “Como a linguagem possibilita acesso a muitas situações sociais, a escola deve se preocupar em apresentar a norma culta aos estudantes, para que eles tenham mais uma variedade à sua disposição, a fim de empregá-la quando for necessário”. [4. Op. cit., p. 12]
Essa variedade prestigiada é comum nas línguas naturais e pode ser encontrada inclusive em sociedades menos desenvolvidas tecnologicamente, como um distintivo, por exemplo, entre os chefes de uma tribo, pajés e outros membros da sociedade. Ou seja, em nenhum momento se pode ignorar o papel que tem essa variedade enquanto instrumento de poder dentro da sociedade.
O domínio do padrão traz sim prestígio e credibilidade ao usuário. Uma apresentação em powerpoint primorosa de um economista sobre as perspectivas da economia dos BRIC’s para a próxima década, se tivesse um “s” fora do lugar perderia a força de argumentação. Um excelente marceneiro é ridicularizado por não usar o padrão, embora seja capaz extrair da madeira obras de arte, e isso ocorre com muito mais frequência, não porque ele fala “errado”, mas por conta da estigmatização de sua classe social. Aí é onde entra a escola para ajudar os dois a evitar, guardadas as proporções, o vexame.
Gramática versus língua?
Por que será que este tema causou tanta polêmica, para além da utopia da unidade linguística? Talvez porque as pessoas ainda têm, no senso comum, uma ideia arraigada que confunde os conceitos de língua e gramática, por um lado, e de gramática normativa com gramática descritiva, por outro.
Em primeiro lugar, a língua, como me ensinou o grande professor Luiz Antonio Marcuschi, é o produto do trabalho de uma sociedade, fruto de negociações, conflitos, consensos e escolhas. Não deve, como já falei, ser considerada como uma estrutura fechada da qual os falantes se valem para comunicar-se, mas um ser vivo, que é moldado e se modifica a partir das práticas sociais.
Gramáticas normativas não são livros sagrados; são o registro de uma variedade de uma língua, usada em um determinado momento histórico por um determinado grupo que goza de um certo prestígio e que preserva esse prestígio ao impor, de alguma forma, seu falar. As gramáticas descritivas ainda conseguem dar um passo além, pois preocupam-se menos em prescrever a regra do que analisar as diversas manifestações de uma língua em uso.
Tradicionalmente, nas escolas, aprendíamos a partir de livros textos que tinham uma perspectiva prescritiva, ou seja, normativa. Pouco a pouco os livros foram considerando as contribuições na sócio-linguística para assimilar os jogos de poder implicados na construção das línguas. É algo que a literatura já pratica há muito tempo, quando é necessário, por exemplo, mimetizar a fala de determinada classe social ou caraterizar uma personagem por determinada marca linguística. Curiosamente, as gramáticas tradicionais, que vinham com aqueles exemplos tirados de textos literários, apenas utilizavam mostras que lhes interessavam, que estavam de acordo com a “norma”. Que loucura deve ser eles quererem citar Grande sertão: veredas!
Toda língua é rio
Para finalizar, eu sempre uso uma parábola para explicar o ofício do gramático e a natureza da língua.
Um homem vivia em um vilarejo e todos os dias se encaminhava a um rio caudaloso que havia perto. Ele levava um daqueles baldes de madeira antigos, que mais vazavam água do que a capturavam. Ainda assim todos os dias ia ao rio, ajoelhava-se em sua margem e enchia seu balde. Ele voltava para o vilarejo e abastecia a casa, cozinhava, lavava as mãos e tudo o mais que a água do rio permitisse fazer. Certa manhã ele voltava com seu balde e encontrou uma criança, que perguntou de onde vinha aquela água. Do rio, ele respondeu. Mas essa água é o rio?, a criança perguntou. O homem parou um pouco para pensar, mas finalmente, talvez por cansaço, talvez para livrar-se do garoto, disse: Sim, este é o rio. O rio, no entanto, seguia seu curso, ignorando aquela gota colhida pelo homem, ignorando a falácia que ele lançara para a criança. O homem, ao chegar a sua casa, teve um infarto e morreu. Demoraram dias para encontrá-lo e, quando o fizeram, viram-no morto ao lado de um balde cheio de lodo, com água estagnada. A criança viu o corpo e disse: ele morreu ao lado do rio.
O rio é a língua, que continua seu fluxo, monumental, exuberante e violento, a despeito dos gramáticos, membros da ABL, jornalistas e jurados de programas de televisão.
Post-scriptum 2020: Muitos anos depois de escrever este texto, encontrei um manifesto, assinado por vários linguistas, que faz uma defesa do livro, analisando o caso. Se quiser aprofundar a leitura, recomendo que leia-o aqui.
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5 Comentários
Pingback:Linguística aplicada à fonética - Wellington de Melo | escritor
Postado às 09:26h, 22 maio[…] língua vai sofrendo ao longo dos anos. Como falei em outro artigo, que você pode ler aqui, a língua está sempre em movimento. Logo, os sons também se modificam, e aquilo que você […]
Pingback:Tentativa de glossocído - Wellington de Melo | escritor
Postado às 17:49h, 15 maio[…] entrar e sair de uso ao longo dos séculos. Não é ideologia, é um processo normal na evolução das línguas. Por exemplo, a língua brasileira é essencialmente proclítica (usamos muito mais os pronomes […]
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Postado às 13:35h, 05 maio[…] vou me alongar sobre o conceito de cultura, já fiz isso em outro artigo (que você pode ler depois aqui). Basta dizer que essa visão de que a cultura é uma conquista cultivada individualmente, de que […]
Andréia Florêncio de Figueiredo
Postado às 22:07h, 18 marçoExcelente artigo, em tempos atuais é de suma importância prestar os devidos esclarecimentos sobre o conceito de língua. Perfeita explicação pautada na definição de Marcuschi.
Wellington de Melo
Postado às 06:52h, 21 marçoMarcuschi é um querido, não é? Volte sempre!