Proibidão, sarau de resistência

Ontem, a partir das 22h01, rolou o Proibidão – Sarau de Resistência. O evento foi um ato contra a recém aprovada lei 15.516, que versa sobre a regulação de atividades artísticas em espaços públicos. Embora parta de uma necessidade real e legítima, a lei tem consequências nefastas para a cultura de rua e para a cultura popular.

Primeiramente, proíbe atividades artísticas de rua antes das 10h e depois das 22h. Isso é preocupante quando pensamos em manifestações que acontecem tradicionalmente à noite, como os maracatus, que já são alvo de preconceito de religiosos que, sob desculpa da “manutenção da ordem”, perseguem esses grupos, que representam o que há de mais profundo em nossa cultura. Em outro inciso da lei, é proibida a participação de menores de 14 nessas atividades. O autor justifica que este item visa atacar o trabalho infantil, que na verdade já tem o Estatuto da Criança e do Adolescente como escudo. Mas a falta de perspicácia do político, que deveria ter uma assessoria de cultura, o fez ignorar que toda uma geração de novos brincantes deixaria de ser formada se sua lei vier a vigorar. Enterraremos de vez a continuidade de nossos brinquedos.

Outro aspecto que aparentemente escapou aos deputados é o que fala da remuneração dos artistas e da comercialização de produtos não autorais, o que demonstra um completo desconhecimento da cadeia produtiva de linguagens como as artes cênicas e circenses. Artistas como os performers de estátuas vivas ganham seu dinheiro honestamente sendo contratados por estabelecimentos comerciais do centro para realizar promoção de produtos. Coletivos de atores ou poetas se apresentam e vendem livros, DVDs ou CDs de colegas durante as apresentações, e não se trata de pirataria.

Mas talvez a maior lição que este episódio trouxe tenha sido para os deputados. Parece óbvio que a lei em questão foi analisada e votada com um desleixo constrangedor, com uma unanimidade que não nos deixa esquecer Nelson Rodrigues. Além disso, revela um modus operandi preocupante, como se leis fossem propostas sem a devida consulta aos setores impactados, e numa quantidade que parece reproduzir a lógica da Capes de produção de publicações científicas em série, talvez para exibir números de projetos aprovados ao final dos mandatos sabe-se lá com que objetivos.

Uns dirão que a lei em questão é reflexo de uma onda de ações antidemocráticas e reacionárias que vem assolando o país, desde leis antiprotesto à proposta de redução da maioridade penal ou um suposto estatuto da família que na verdade é cria de um fundamentalismo cristão homofóbico. No caso específico desta lei, insisto na preguiça e no desleixo como principais responsáveis pela aprovação unânime pelo legislativo estadual. Pena que a culpa acabe caindo nos assessores, que têm responsabilidade no caso, mas estão longe de serem os fiéis depositários das expectativas do povo. Outros foram os que receberam votos para legislar: esses são os reais responsáveis por quaisquer avanços ou retrocessos que aprovem, como a ridícula lei ora discutida ou o recente projeto de lei que lançou na lama a carreira de docente com formação superior no estado de Pernambuco.

Os deputados saem do processo minimamente mais atentos, principalmente o relator, que chegou a fazer um mea culpa sobre a aprovação da lei e por terem passado despercebidos os impactos nocivos. Aliás, a presença dos dois políticos no ato de ontem é um capítulo que merece uma análise especial. Naturalmente a presença de ambos no evento para falar com os artistas era legítima. Até aí, nada demais. Mas o fato de o autor da lei aparecer cercado de assessores e seguranças demonstra quão distante ele está da realidade do mundo artístico. Foi curioso ver como a presença dos deputados direcionou em determinado momento a atenção da imprensa presente, tirando o foco do ato em si e projetando a luz sobre o sorridente político.

Toda a mobilização parece ter surtido efeito, diante do recuo do autor frente à mobilização e sua disponibilidade em modificar a lei. É, no entanto, risível a declaração do deputado de que houve exagero na manifestação, que se estava “fazendo tempestade num copo d’água”, alegando que seu gabinete sempre esteve aberto para discutir e modificar a lei. A questão é inversa: antes de propor leis, cabe ao legislador ouvir o setor afetado e não esperar a repercussão para modificar o que quer que seja. Prontificar-se a discutir depois de proposto uma lei absurda e após uma repercussão negativa é fácil. Difícil é o real exercício da democracia de construir a política em conjunto com a sociedade civil.

Por fim, mas não menos importante, o oportunismo de um pretendente a político, que manifestou seu repúdio à lei, menos por um real compromisso com a questão do que por aparente interesse em fustigar um futuro adversário na disputa eleitoral do próximo ano, que curiosamente vem a ser o autor da lei natimorta, chama a atenção dos menos ingênuos. No final das contas, vence a democracia e fica claro que é essencial a mobilização da sociedade civil organizada na defesa de seus direitos. Estejamos sempre atentos, proibidamente atentos.

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