Alguns dos mais belos versos da literatura brasileira foram publicados há dois anos. Seu autor não consta nos compêndios de referência, suas páginas não foram levadas às prateleiras por alguma grande editora. Suas letras foram impressas em edição artesanal, sua beleza navegou em restritos círculos de leitores. Apesar de ser mais conhecido pelo romance Estrangeiro no Labirinto (semifinalista do prêmio Portugal Telecom, em 2014, e bem mais repercutido na mídia), parece-me que é pelo livro O caçador de mariposas que Wellington de Melo já merece lugar destacado não só entre seus coetâneos, mas em qualquer seleção que busque momentos excepcionais da produção poética nacional.

Editado pelo próprio Wellington no estilo “cartonero”, com capas de papelão pintadas manualmente, tiragens e distribuição independentes, O caçador de mariposas é um presente/homenagem do poeta ao seu filho Aleph, que é autista. O título vem de uma noite de São João, quando um bêbado viu o garoto correndo atrás de mariposas que voavam pela praça, aproximou-se do pai e indagou: “Ele é doidinho, né”?

Daquela tentativa inconveniente de conversa, surgiu um dos diálogos poéticos mais belos, dividido em 21 cantos dos mais comoventes: a voz de um pai que busca dar significados, a voz de um filho que está além de qualquer significado. Cantos que não nos chegam com mensagem reconfortante, com signos nos quais apagamento da dor, da angústia pela tão difícil comunicabilidade que lhes fez nascer. Em um deles, o poeta escreveu:

há ruínas que atravesso
nessa tarde
menino

são meu olhar
e desejos laçados
em arame farpado
para guardar sonhos
e pães mofados na casa abandonada

eles dormem enquanto
passeio contigo de carro
por ruas de pupilas assombradas

essas paisagens eu invento
porque dói teu sorriso
como arrancar costelas com uma colher

dá-me tua mão
caminhemos pelos escombros
caminhemos por teu jardim celeste

II

No conto de Borges que provavelmente inspirou nome do filho de Wellington, temos um ponto onde visível tudo que existe, existiu e existirá. Numa dessas belas e perversas ironias reais que a ficção não consegue igual ou sequer aproximada, o menino Aleph pode não ter apresentado ao pai todos os universos em todos os tempos, mas decerto ressignificou tudo que Wellington de Melo já descobriu, vive e ainda conhecerá. “Tu, meu princípio / e o fim de mim / meu abismo”, diz o poeta no Canto XII.

Através das páginas de O caçador de mariposas, experimentamos algo dessa experiência e, assim, realizamos nossa própria jornada através das palavras e silêncios com os quais o poeta buscou expressá-la – mesmo sabendo que estava lidando com duas intransitividades: a da poesia e a da transcendência daquela relação familiar tão especial.

Ao terminar o livro, recordei versos do poema “Legado”, de Carlos Drummond de Andrade, que diz: “De tudo quanto foi meu passo caprichoso / na vida, restará, pois o resto se esfuma / uma pedra que havia no meio do caminho”. Aquela pedra, logicamente, era muito mais do que uma pedra; e o que restaria não seria apenas um poema, alguns versos, sobre algo no meio do caminho.

Da mesma forma, para além do que o pai de Aleph legar com sua literatura, arrisco dizer – em sentença que também deve ser lida com desconfiança, embora não me pareça mal que interpretem literalmente – que, no silêncio do seu filho e nas vozes de O caçador de mariposas, Wellington de Melo já nos deixou conhecer algo que o tempo não fará esquecido.

Publicado originalmente no blog do Café Colombo, na coluna Doppio Espresso.