Concedi entrevista ao jornalista Schneider Carpeggiani no Suplemento Literário Pernambuco de setembro de 2014. Nela, falo sobre minha atuação junto à Coordenadoria de Literatura do Estado, sobre o movimento cartonero e adjacências. Confira a entrevista abaixo.
O escritor Wellington de Melo está prestes a completar quatro anos à frente da primeira pasta de literatura do Governo de Pernambuco — criada em 2011, na gestão do artista plástico Fernando Duarte na Secretaria de Cultura. Entre suas principais ações, foram criados festivais o Congresso Internacional do Livro, Leitura e Literatura no Sertão(CliSertão), que acontece em Petrolina, e o Festival Internacional de Poesia(FIP) e um prêmio literário. Nessa entrevista em que faz um balanço da sua gestão, Wellington comenta os resultados das suas principais medidas, fala da importância das bibliotecas públicas e relembra ainda o legado do festival anárquico FreePorto, que há alguns anos brincou com a hierarquia presente nos grandes eventos literários do Brasil: “A festa real era o encontro com um livro, só isso. A mensagem foi dada e quem tinha que entender, já entendeu. Alguns usavam um termo engraçadinho, irreverente, para se referir à festa”. Leia a seguir a íntegra da nossa conversa.
Você comanda a primeira pasta de literatura de Pernambuco. Quais os principais desafios de montar uma pasta como essa e que quadro você encontrou logo de princípio?
Havia uma Assessoria de Literatura, com uma equipe formada por uma técnica e três bolsistas, mas sem qualquer planejamento ou histórico das ações. Fernando Duarte, então secretário de Cultura, criou a Coordenadoria de Literatura e me convidou a assumir. Fiz um planejamento, tive que lutar pelo orçamento de cada ação, além de me adaptar ao ritmo da gestão pública. Busquei estabelecer um canal de diálogo com a sociedade civil, para escolher as ações prioritárias, reativando a Comissão Setorial.
Antes de trabalhar à frente da pasta de literatura, você organizou a FreePorto, que era um festival literário anárquico, cujo título ironizava justamente a Fliporto (principal evento literário de Pernambuco). De que forma essa experiência foi reaproveitada em seu trabalho na pasta? Você pensa em fazer novamente algo parecido com a FreePorto?
A FreePorto — criada por Artur Rogério, Bruno Piffardini e por mim – discutia o modelo de festas literárias no Brasil. Aproximar a literatura do público, respeitar o trabalho dos autores, evitar tratamentos diferenciados, implodir pedestais e púlpitos: essa era a essência da FreePorton que me acompanha. Ela cumpriu um papel naquele momento: fizemos uma trilogia (2009, 2010 e 2011) para levantar essas discussões, fazer pensar. A última edição foi um “não evento”: nos negamos a fazer a festa, estimulando as pessoas a fazerem suas próprias FreePortos. A festa real era o encontro com um livro, só isso. A mensagem foi dada e quem tinha que entender, já entendeu. Alguns usavam um termo engraçadinho, irreverente, para se referir à festa. Mas o adjetivo só fazia sentido se se entendesse o evento como algo que não fazia reverência aos modelos, às fôrmas, não para fazer graça. A FreePorto foi o evento literário mais sério dos últimos anos no Brasil.
A sua gestão tem uma preocupação em pensar a literatura no interior do estado, com a criação do Clisertão, que realizou um festival literário numa região onde praticamente não há livrarias . Você poderia comentar um pouco o porquê de Petrolina como sede do projeto e qual a principal missão do projeto na região?
Estava previsto no planejamento um evento nesses moldes, no Sertão, alinhado à política de interiorização. Conhecemos então o professor Genivaldo Nascimento, da Universidade de Pernambuco, campus Petrolina, idealizador do Clisertão. Deveria ser um evento só acadêmico, mas reformulamos a proposta e hoje é um evento que envolve os elos da cadeia do livro, alia discussões teóricas de alto nível à aproximação do público geral à literatura contemporânea, trabalha a formação de público leitor e o desenvolvimento da cadeia produtiva. Depois dele, Petrolina revelou novos autores, há uma livraria e uma segunda em vias de inauguração, criou-se um novo selo editorial, o Carranca Cartonera, a cena literária da região volta a ocupar destaque. É preciso incentivar sempre, potencializar a cultura que já existe longe da capital.
Outra ação da pasta foi o Prêmio Pernambuco de Literatura, lançado num momento em que o Prêmio Literário da Prefeitura do Recife estava paralisado. Qual a importância de fomentar a literatura a partir de uma iniciativa como essa? Que tipos de resultados positivos efetivos um prêmio como esse traz?
A contribuição maior do prêmio é revelar nomes: conhecemos o trabalho de Bruno Liberal (Petrolina), de Joseilson Ferreira (Passira), de Wander Shirukaya (Itambé). É bacana também que autores de renome tenham participado (Fernando Monteiro, Walther Moreira Santos, Delmo Montenegro). O prêmio é importante porque abre oportunidades, torna mais conhecida obra dos vencedores, que devem, como contrapartida, realizar palestras, oficinas ou outras atividades dentro da nossa programação. Isso estimula escritores das regiões a participar e seguir escrevendo, qualifica os leitores. É um modelo único no Brasil e tende a crescer. Há demanda do setor por uma categoria nacional para livros publicados. Vamos ver.
Há projetos seus em fazer também algo ligado às bibliotecas, por exemplo, a Biblioteca Pública Estadual que está localizada num ponto estratégico do Recife?
As bibliotecas no Estado são responsabilidade da Secretaria de Educação, mas fizemos ações de formação e de discussão sobre o tema. Em 2011 o Fórum Pernambucano em Defesa do Livro e da Leitura estava desarticulado e incentivamos sua volta, com o primeiro Seminário do Livro, Leitura e Literatura. Foi a semente para a criação do Fórum em Defesa das Bibliotecas, do Livro, da Leitura e da Literatura, que organizou já dois encontros estaduais de bibliotecas e vem desenvolvendo discussões importantes. A Secretaria de Cultura promoveu seminários em todo o Estado em parceria com o Fórumpara mapear a situação das bibliotecas. É urgente aproximar o Sistema de Bibliotecas da Secretaria de Cultura, repensar o conceito de bibliotecas e sua atuação como equipamentos culturais. Bibliotecas são espaços vivos, não depósitos de livros. A escolarização das bibliotecas e certa infantilização de seu uso por parte dos gestores, impede pensar que esses espaços deveriam servir à comunidade como um todo e não ser apenas salas de estudo para concurseiros. Bibliotecas escolares deveriam ser usadas pela população dos bairros, por exemplo. São cerca de 642 estaduais e só no Recife mais 145, somadas as bibliotecas municipais (197, com dados de 2012). Um potencial transformador normalmente negligenciado.
Uma das suas primeira iniciativas foi justamente a criação do FIP, o festival internacional de poesia. O que lhe levou a apostar na poesia para ser o principal motivo de discussão do único festival literário feito pelo Estado no Recife?
O Festival Internacional de Poesia estava em nosso planejamento e é um dos únicos do Brasil. O Recife se firma na rota de festivais como Medellín e Havana. De suas três edições participaram 110 poetas de diferentes partes do mundo, todos se olhando como iguais. Várias parcerias surgiram a partir de encontros que foram possíveis graças ao festival e as conexões estéticas que promoveu. Fazer um festival de poesia é importante porque a tônica de festivais literários normalmente é comercial, com nomes indicados pelas editoras ou pelos cadernos de cultura. Existe público para festivais assim, mas não deixo de pensar que há certa preguiça nisso tudo, muito mais do mesmo. Um dos papeis do Estado nas políticas públicas de cultura é fortalecer as manifestações que não têm espaço no mercado, mas que são essenciais para a construção do imaginário e da subjetivação do povo. A poesia é um anti-produto-editorial, mas é a essência de todas as formas de arte. Realizar um festival internacional de poesia deveria ser uma obrigação de qualquer gestor de cultura.
Você está voltado, desde o ano passado, para o projeto da Mariposa Cartonera, de livros artesanais. Como surgiu essa ideia e qual a relação dela com a linha do seu plano como gestor de literatura?
A poeta Mariane Bigio, Valmir Jordão e Miró iam lançar um livro pelo Dulcineia Catadora (São Paulo), no Festival de Inverno de Garanhuns, e Mariane sugeriu trazermos uma oficina de livros artesanais com a editora do Dulcineia. Vimos se havia coletivos de catadores na cidade e os pus em contato com um grupo de escritores. Ambos fizeram a oficina e surgiu o Severina Catadora, hoje formado pelo Coletivo Tear e catadoras da Associação dos Catadores de Papel, Papelão e Material Reaproveitável (Asnov). No ano seguinte realizamos o primeiro encontro internacional do movimento em Garanhuns, com a presença de cartoneras da Argentina, França, Paraguai, Bolívia e Chile. Incentivamos a vinda de um hubde editoras cartoneras para a Bienal Internacional do Livro de Pernambuco, participamos do lançamento de um prêmio internacional de literatura cartonera. O cartonerismo é uma alternativa muito interessante, pois permite aos autores ter independência na publicação, com o valor agregado por comercializar livros artesanais com capas únicas. Foram oferecidas oficinas para incentivar a criação de selos. Hoje há selos em todas as macrorregiões: Lara Cartonera (Belo Jardim), Carranca Cartonera (Petrolina), Comissão Cartonera (Bomba do Hemetério/Recife), André Arribas (que tem uma livraria-bicicleta).
O Mariposa Cartonera surgiu no ano passado e hoje tem uma colaboração muito importante de Patrícia Cruz Lima, designer gráfica, e de Sidney Rocha, que sempre dá ideias muito legais. No Mariposa fizemos uma parceria com outra cartonera na Argentina e vamos traduzir e lançar mutuamente autores brasileiros e argentinos. É algo que para editoras convencionais requereria muito mais tempo. O movimento tem um potencial enorme de difundir a obra dos autores e democratizar o acesso ao livro, por isso cremos ser interessante como uma linha de trabalho a ser incentivada. O cartonerismo é o mais importante movimento literário mundial desse início do século 21.
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