Por Raimundo Carrero[1]Texto publicado originalmente no Suplemento Pernambuco, mar. 2014
Um livro que não é um livro, um romance que não é um romance mas um caleidoscópio de narrativas, ou seja — narrativas ou mundos paralelos, é uma prisão mas pretende a liberdade absoluta, assim é — ou parece ser — o romance quântico Estrangeiro no labirinto, de Wellington de Melo, numa ousada estratégia formal, que marca a sua estreia em livro no campo da ficção. Na apresentação do texto, a editora afirma, por exemplo são “vozes anônimas que tentam explicar a natureza de um livro que supostamente aprisiona seus leitores, usando conceitos de física quântica, da psicanálise e do ocultismo.”
Para alcançar os efeitos desejados, o autor opta, por exemplo, pela alternância dos tempos verbais, recorrendo a frases que parecem não se completar e recorrem à ajuda da mais próxima. Na abertura, uma frase sem verbo para oferecer um movimento leve e contínuo, sem pausa e sem conclusão — O livro em minhas mãos agora não mais. Em seguida, o presente do indicativo, numa mudança radical de imagem, Do alto da igreja o anjo me observa sob a luz leitosa do poste. Depois, a incrível marca do imperfeito — o tempo verbal sem tempo, que tanto impressionou Flaubert e Proust —, para desaguar, ainda, num gerúndio, que nem mesmo é tempo verbal. Dionísio sorrindo através da face desse anjo. Na verdade, o gerúndio não é tempo verbal, é forma nominal, mas tem o conceito interno de presente do indicativo, pelo que pode conter na sugestão a sorrir — para ser mais claro: sorrindo significa a sorrir, que os portugueses usam com grande precisão.
De forma que o a sorrir paralisa a frase, o sorriso começa e termina logo, mas o gerúndio elastece o seu significado, muito próximo, portanto, do imperfeito. Na sequência, um verbo sem força de verbo O cordeiro de Deus aprisionado na pedra sobre a porta central. Assim, este começo é, ao mesmo tempo, uma ação e uma descrição. Para prosseguir num série de frases que se estranham e se misturam até se dissolver — Quero chorar, não há tempo. Falta pouco, eu sei. O vento quase arranha a pele; carícia às avessas; as asas de um pássaro, cascos de algum animal desconhecido em meu pescoço; o asfalto morno do centro da cidade; a terra e o fogo enfim unificados; caminho nessa terra esquecida por um tapete de pelos macios que desaparece a cada passo.
Um romance desafiador
É claro, um romance difícil, dificílimo, que exige atenção redobrada do leitor e uma dose incrível de sensibilidade e de criatividade a cada palavra, a cada movimento. Afinal, o texto vai sendo urdido por diferentes narradores através de cenas que se repetem com pequenas variações. A editora adverte “um livro de difícil classificação, que abarca desde a crítica social à possibilidade de universos paralelos”.
Aliás, somente uma editora que não visa, unicamente o lucro, mas considera, em alta escala, a qualidade, tem a coragem de valorizar um livro destes, um grande romance experimental, em que está em jogo a obra de arte, na sua mais alta conceituação.
Wellington de Melo integra, a partir de agora, o grande time de reformuladores do romance brasileiro, que vai, digamos, de Oswald de Andrade a Guimarães Rosa, e de Guimarães Rosa a Osman Lins, com a ousadia de investir no arriscado campo da temporalidade da física quântica. Assim, só uma editora deste porte — a Confraria do Vento, poderia investir em obra deste porte.
Quem seria na verdade o personagem central desta intrigante narrativa? O personagem central, por incrível que pareça, são os narradores. A eles estão entregues os sentimentos, os movimentos, a ação. De forma que nem será preciso mesmo nomeá-los. Não será preciso um nome — “O que é um nome?”, pergunta Shakespeare em Romeu e Julieta —, se chamarmos uma rosa de flor, mesmo assim, a rosa continuará sendo uma rosa, e não perderá o seu perfume. Tudo isso parece existir na intimidade deste romance desafiador e em tudo o que nele há de notável. De criador. De renovador.
A flutuação de narradores e de tempos verbais vão criando um tapete narrativo em que, muitas vezes, as vozes são mais importantes do que os narradores. O estrangeiro não está só no seu exílio, se é que se pode falar em exílio, nestas circunstâncias, ou nas circunstâncias do romance em que nada tem pêlo nem pele, nada tem um tempo e nada se encontra firme e forte. E nem mesmo o narrador em primeira pessoa, que nem mesmo é um narrador ou vários narradores, lembrando aquele burburinho das feiras de que fala Flaubert e que realiza tão bem nos comícios agrícolas de Madame Bovary.
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