Há os que veem com maus olhos aqueles escritores que, depois de escrever sua obra, colocam o livro debaixo do braço e partem para a promoção de seu trabalho. Seria ainda o escritor o gênio da raça, o incompreendido por seu tempo, aquele a que cabe apenas o papel de escrever numa torre de marfim e deixar essas coisas seculares para os editores e agentes literários?
Tratam-se de dois processos diferentes e igualmente válidos: o trabalho de gestação artística do livro e o de divulgação, promoção da obra para que alcance o maior número de leitores. Claro que nem todos autores têm a habilidade de vender seu trabalho. Alguns têm ojeriza de falar em público, que dirá oferecer seu livro a venda. E não há nenhum problema nisso. Estranho apenas ouvir lamúrias dos que seguem defendendo essa visão idealizada e purista, que nega ao autor o direito de acompanhar esse processo pós-escrita.
Impedir que o autor trabalhe para divulgar sua obra é de uma inocência maliciosa, ajuda apenas a manter a literatura como uma arte elitista num país que nos últimos anos reduziu seu número de leitores. Ao mesmo tempo, e trabalhando no campo do contraditório, o autor que se perder na profusão de eventos de divulgação – não raras vezes por pressão das editoras, que submetem escritores a relações de trabalho duvidosas – deixando de lado o que mais importa em seu ofício, cometerá o mesmo erro de um carpinteiro medíocre que expõe suas cadeiras toscas em via pública o dia todo: gastou tanto tempo tentando vender as cadeiras que esqueceu de fazê-las com o primor das que fabricava na juventude.
Impedir que o autor trabalhe para divulgar sua obra é de uma inocência maliciosa, ajuda apenas a manter a literatura como uma arte elitista num país que nos últimos anos reduziu seu número de leitores.
Por que a comparação com um carpinteiro? Porque o ofício de escritor tem a mesma dignidade do de um carpiteiro, de um catador de lixo ou de um professor: todos são trabalhadores e da mesma forma como não se pode sacralizar o ofício do professor – argumento inclusive bastante usado pelos donos de escolas e gestores do executivo para garantir que os professores vejam em seu trabalho uma missão divina e com isso aceitem as péssimas condições de trabalho que lhe são impostas – não se pode romantizar o trabalho de escrever, de construir mundos: por mais mágico que possa parecer, é um ofício e, como tal, está sujeito aos conflitos de classe.
A visão do escritor como trabalhador não é nova, na verdade. Grandes obras da literatura do século XIX, pra ficar só nele, foram feitas sob encomenda, por exemplo, e eram mediadas por questões, digamos, mundanas. Publicadas em folhetins, devoradas pela burguesia, como as telenovelas de hoje. As circunstâncias de produção não tiram a qualidade do texto. Confunde-se aqui esses com os que são puro marketing, que fazem obras pensadas para um nicho de mercado, que produzem cultura de massa, não literatura.
Como diferenciar, então, os fazedores de best-sellers-que-viram-filme dos escritores de folhetins do passado e que escreveram grandes obras de arte? Parece que a cultura da celebridade e a padronização dos produtos culturais, marcas de nosso tempo, se sobrepõem à capacidade desses autores de produzirem obras únicas e que modificam a experiência dos seus leitores sobre a Terra: há um foco na criação de um modelo infalível de narrativa, pensado para vender a maior quantidade de livros e gerar mais lucro, enquanto aquelas obras do século XIX, que muitas vezes poderiam ser menos longas do que foram se os autores não ganhassem por palavra escrita ou outras medidas quantitativas, ainda conseguem se destacar enquanto obras primas da linguagem. Quanto disso é culpa do mercado editorial ou dos próprios autores que se submetem ao jogo é assunto para mais de um artigo.
Mas não subestimemos os leitores. É óbvio que o crivo definitivo para legitimar a qualidade literária de uma obra é a decantação do tempo. Conversava isso com meus alunos do laboratório: há dois anos Crepúsculo era a sensação entre meus alunos de 14 anos. Ano passado foi a vez de Nicholas Sparks e seus romances pré-cozidos; os alunos com quem conversei este ano já percebem a “jogada” de um autor como Nicholas Sparks. Este ano me deparo com meus alunos do Laboratório de Leitura e Produção de Textos falando de John Green (detalhe que quando falo dos ex-queridinhos, fazem careta).
Parece absurdo, mas esse fenômeno também acontece, em maior ou menor medida, com autores que se tornam, por algum motivo, preferidos de certos círculos intelectuais ou da crítica, mas cuja obra ainda passa por esse processo de decantação. Na verdade, não há nenhum mal nisso e a ciumeira pode fazer alguns dizerem coisas das quais eventualmente se arrependerão. Mas, como já disse, não se pode subestimar os leitores. No final, são eles quem têm nas mãos o futuro e a permanência das obras literárias.
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