O poeta e apologista sertanejo Ésio Rafael costuma dizer que João Batista de Siqueira, mais conhecido como Cancão, é o deus da poesia do Pajeú. A herética afirmação talvez incomodasse o próprio pássaro poeta, devoto de Maria e dotado de uma religiosidade extrema. Mas qual seria o motivo para o epíteto divino? A nova edição da coleção Letra Pernambucana, editada pela Cepe Editora, com revisão do próprio Ésio e de Marcos Passos esclarece a questão.
A exemplo de outros poetas sertanejos iluminados, Cancão frequentou pouco a escola. Isso deveria tornar sua obra ainda surpreendente a nossos olhos condicionados ao papel da educação formal, dadas as constantes referências à história e a mitologia clássicas em sua obra. O fato fez com que alguns apologistas, talvez de maneira equivocada, atribuíssem essa erudição a alguma inspiração sobrenatural. Isso, no entanto, reflete mais um certo preconceito metropolitano com respeito ao Pernambuco profundo. É que, se existe ainda hoje alguma ignorância do público em geral da multiplicidade de vozes literárias do interior, certa classe de escritores e alguns acadêmicos agregam ao caldo azedo algum desdém pela dita “poesia popular”. O conceito, tão difuso e ambíguo, é um rótulo que vozes como a de Cancão colocam em xeque.
origens de cancão
Cancão nasceu no Sítio Queimadas, em São José do Egito, em 1912. Embora tivesse participado de cantorias de viola na juventude, uma manifestação que prima pela poesia do improviso, desde a década de 1950 dedicou-se exclusivamente à escrita. A Academia cada vez mais tem-se debruçado sobre a poética sertaneja. Apesar disso, a grande maioria dos estudiosos olha de soslaio para essa tradição.
Lembro de uma reunião com um acadêmico “cujo nome não quero recordar”. Eu anunciava que estaríamos em 2012 celebrando o centenário de Cancão dentro da programação da Secretaria de Cultura de Pernambuco. O distinto acadêmico respondeu com um “quem?”, acompanhado com uma cara de nojinho. Mas não são todos que cultivam a ignorância, é certo.
O professor Josivaldo Custódio, da Universidade de Pernambuco, escreveu um interessante trabalho cotejando as obras de Cancão e Augusto dos Anjos. A despeito de apresentar algumas posições questionáveis, traz a obra do poeta do Pajeú para o centro de uma análise comparativa de alto nível. O professor Aroldo Ferreira Leão, da Universidade Federal do Vale do São Francisco, analisa os sonetos canconianos e observa a subversão que faz o poeta da forma clássica, já inserida na tradição da poesia popular. Digno de nota também é o prefácio de Musa Sertaneja (1967), escrito pelo membro da Academia Pernambucana de Letras, Ulysses Lins de Albuquerque.
poesia popular e academia
Sabemos que, a despeito do que se ensina no ensino médio, as ditas escolas literárias não se intercalam de maneira linear com a publicação de tal ou qual livro. Na verdade, influências de diferentes dicções se sobrepõem e fazem com que cada poeta represente uma gama de inter-relações que o tornam único, mais ou menos ancorado a seu tempo e a outras vozes do seu entorno. Para além da influência da poesia da Serra do Teixeira e da oralidade poetizada nos pés de parede,
Cancão era certamente um leitor dos clássicos da poesia brasileira. Seria ingênuo afirmar que a presença constante em sua obra de temas como a natureza ou a religiosidade, além do tom lúgubre de poemas como “Seis horas no cemitério”, não recebeu influência de sua leitura dos românticos, como recorda Ulysses Lins, que reconhece ecos de Fagundes Varela e Casimiro de Abreu em sua poesia. Por outro lado, sua amplitude vocabular, ora pomposa, não nos faz ignorar alguma ressonância parnasiana, embora não pareça Cancão cultuar obsessivamente a forma, o que reforça sua inclinação para a expressividade romântica.
CANCÃO PESQUISADO
O trabalho de maior fôlego sobre o poeta egipciense é do professor Lindoaldo Campos, cujo fruto foi a publicação do livro “Palavras ao plenilúnio” (2007), edição esgotada da obra reunida de Cancão. Diferentemente da edição da Cepe, a obra trazia notas explicativas sobre as diferentes versões dos poemas publicados em livro, encontrados em manuscritos ou gravações. A presente edição, a nosso ver de maneira acertada, privilegia a obra completa do autor ao apresentar os poemas conforme a ordem dos poemas e os prefácios das primeiras edições, o que parece mais interessante tanto ao público que ainda não conhece Cancão como para aqueles que não tiveram acesso a essas obras, há muito esgotadas.
Além disso, a edição da coleção Letra Pernambucana traz poemas inéditos catalogados por Lindoaldo após a publicação de “Palavras ao plenilúnio”, o que faz da presente edição da Cepe essencial para conhecer Cancão. Que me perdoe o pássaro poeta o pela heresia, mas essa edição é uma verdadeira bíblia da poesia sertaneja.
Serviço
Coleção Letra Pernambucana: Musa Sertaneja, Flores do Pajeú, Meu lugarejo e poemas inéditos, de João Batista de Siqueira (Cancão)., 350 páginas, Cepe Editora
Texto publicado originalmente na Revista Continente (jul. 2013)
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