J. havia sido roubada. Conversava abobrinha no celular enquanto descia do ônibus. O ladrão era um daqueles rapazes de cabelos amarelos que vemos no carnaval e nos domingos na praia do Pina. Só de bermuda, tatuagens. Um bote e foi-se ele com o celular da displicente. Falavam de quê? Das manifestações que os estudantes de férias estavam fazendo no Recife por conta das passagens? Talvez.

O ladrão correu, sem saber que passava diante da corregedoria da polícia. Mais tarde uma agente diria que eles são ‘a polícia da polícia, mas são polícia’. Correram atrás dele, mas foi uma senhora, talvez moradora de rua, corpulenta, que pegou o rapaz e o obrigou a devolver o celular de J.

Recebemos a ligação de J. de que estava na delegacia já era noite. Fomos até a corregedoria, mas ela já havia saído para o plantão. Ainda havia alguns manifestantes, aproveitando talvez o final da rabeira do que seria a manifestação, ou tentando fazer a sua própria na Conde da Boa Vista. Não atrapalharam nosso tráfego.

No plantão havia uma policial anotando a ocorrência. Passava a limpo para um papel e depois copiava para a ficha padrão. Achei interessante o cuidado com o que escrevia. O ladrão deveria estar em alguma cela. Aos poucos fomos sabendo sobre ele. Tentavam saber se tinha passagem pela polícia. Outra agente, essa mais experiente, dizia que ele devia estar mentindo o nome, já que não encontravam nada no sistema. Chamarei o ladrão de C.

J. estava numa sala, prestando depoimento. Quando pegaram o celular ela quis ir embora. Disseram que ela não poderia deixar que ele fizesse aquilo com outras pessoas. Ela decidiu ir à delegacia. Demoraríamos quase duas horas no processo todo. Não saía de minha cabeça que essa demora era para que a vítima tivesse uma co-responsabilidade no destino do ladrão, para que experimentasse cada instante que precedia seu abismo. C. devia ter levado alguns safanões, pelo que entendi da conversa. Ainda procuravam sua ficha quando chegou o casal.

Um boyzinho de uns vinte anos – C. tinha 22, mais tarde saberia – uma menina que parecia ser mais velha, com um jeito meio hippie. Fiquei na dúvida se eram vítimas ou acusados de algo. Posse de drogas, soube logo na sequência. O rapaz parecia tranquilo, a menina tinha um rosto inalterável e um olhar endurecido. Em algum momento começaram a pesar. Doze gramas. Como a lei no Brasil não impõe um peso que distingue o traficante do usuário, caberia o bom senso do juiz para saber se aquele boyzinho traficava. Artigo 33 ou 28 do Código Penal?

Enquanto isso, saíam novidades sobre C. Não tinha passagem. A agente experiente disse que provavelmente tinha roubado muito, mas só hoje tinha caído. Iria para o Aníbal Bruno. Vi a foto de C. na tela do computador. Um olhar vazio, de quem tem pouco o que esperar da vida. O nome da mãe, não lembro qual era. Estaria pensando nele, querendo saber onde estava o menino? Não tinha o cabelo pintado na foto. O pai: não informado. Mais um dos milhares de meninos sem pai, criados com a força de uma mãe ou com a permissividade? Quem era eu para julgar C.?

O boyzinho conversava com os agentes que o trouxeram. Comentavam que a maconha estava misturada. Alertaram que se ele fosse fichado, depois para fazer concursos ficaria ruim. Não sei se tentavam extorqui-lo. Ele disse que dali a dois anos os dois iriam morar na Amazônia, que nada mais importaria. A menina tinha o mesmo olhar paralisado, como se assistisse a tudo aquilo com desprezo ou fúria, não tinha muito como saber. Será que ela achava o boyzinho tão idiota como eu achava ou seria o amor da vida dela? Viviriam felizes no meio da Amazônia, fumando toda maconha que plantassem, dariam cria a sete pirralhos e seriam caretas com eles, para que não fumassem.

Alguém ligou para o rapaz. Ele explicou que estavam na delegacia, que saiu da manifestação e que pegaram ele. “Doze gramas”, ele falou para quem estava do outro lado e que não parecia ser os pais. Os agentes sorriam de algo. Um deles mantinha-se sério, mas para mim estava claro que seriam liberados em algum momento. O rapaz provavelmente não daria nenhuma ‘ajuda’ aos guardas. Será que seus pais viriam e faria a festa da moçada? Não sei. Mas acho que tudo acabaria com um ‘Vai-te embora, boy, vive tua vida”.

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