Diante do pálido mictório, enquanto gotículas imperceptíveis de urina salpicavam em sua mão, percebeu em um dos orifícios do ralo uma pequena esfera prateada.
Pensou inicialmente tratar-se de um piercing ou uma bolinha de gude. Por não mais que dezesseis segundos – tempo que levou entre o jato inicial e o balançar definitivo – conjecturou sobre o que efetivamente seria a minúscula esfera. Depois de saciada a vontade que o levara ali, aproximou-se mais do vaso suspenso na parede. Não se tratava afinal de uma esfera: veios milimétricos entrecortavam sua superfície irregular e mínimas manchas esverdeadas se espalhavam por toda área visível, como pequenos pontos de bolor. Seria uma bolinha de papel alumínio de um bombom ou coisa que o valha. Poderia ter-se conformado com essa teoria, mas não poderia sair dali sem saber efetivamente o que era aquilo. Sua curiosidade, no entanto, teria consequências nefastas.
Olhou para trás. Observavam-no uma lixeira transbordando de papel higiênico, um grande espelho manchado nas extremidades e os outros mictórios, simetricamente dispostos em silenciosa fileira. Não temeu, então, o gesto que se seguiria: estendeu a mão até tocar a esfera e com a unha do indicador retirou-a do orifício em que estava alojada. Parecia ser uma bolinha de confeiteiro mofada. Examinou-a com displicência, não sem certo desapontamento, e arremessou-a no chão.
Naquele mesmo instante, cinco milhões e duzentas mil pessoas eram esmagadas em Albion. As redes de notícia, com seus jornalistas ainda atordoados, classificariam o cataclisma que afetou o Hemisfério Áureo albiniano como “o mais horrendo desastre nos últimos quatrocentos ciclos lunares” – cada clico lunar ali equivale a quarenta e sete segundos terrestres; um ciclo lunar, segundo o Albinianus Compendium Libris, é o suficiente para que reis ascendam e sejam derrubados no planeta prateado.
Aquele seria o prenúncio da destruição definitiva de Albion.
Algumas semanas albinianas depois – não nos deteremos à maçante tarefa de converter isso para micro-segundos terrestes – todo o planeta seria esmagado por sucessivos golpes de uma massa sólida que, muito tempo depois, estudiosos de outras galáxias ainda tentariam identificar. Ignoravam esses estudiosos – alguns deles céticos sobreviventes de Albion – as profecias de Ajax-8, robô-oráculo do Hemisfério Úmbreo, que, entre gargalhadas de senhoras céticas que passavam pelo shopping center em que construíra seu templo, pronunciara palavras perturbadoras. A seguir, transcrevemos parte do texto do profeta cibernético tal qual nos foi confiado por um discípulo seu cuja identidade manteremos em segredo:
“… chegará um tempo em que, depois de uma última chuva urinácida, o belo planeta prateado de Albion encontrará sua desgraça nas mãos do Avatar do Sono. Em seus dedos desastrados repousará a sorte de todo o povo descrente de Albion; em seus dedos o destino de todos os mais hipócritas devotos; sua displicência será a ruína dos que comodamente seguiam suas vidas – crentes ou não – negando a verdade última: que estamos sós e que nossos deuses desdenham de nossos anseios não por crueldade, mas porque diante de seus olhos somos apenas partículas quase invisíveis de bolor.”
2 Comentários
Wellington de Melo
Postado às 21:05h, 20 agostoNão sabia! :D Coisa estranha o inconsciente coletivo!
Albion vem do latim (alvo).
Primeira coisa que me ocorreu ao pensar num planeta fincado num mictório.
Joana
Postado às 20:38h, 20 agostoMuito legal, o conto! Mas, por que decidiste pôr “Albion” o nome do planeta? (sabia que este é o nome arcaico da Grã-Bretanha?)