Crônicas de São João (parte 3)

No dia seguinte fomos ao Vale do Catimbau, em uma excursão organizada pelo SESC. Os amigos Jaime e Girlane estavam em Arcoverde e nos encontramos por lá.

A estrada para Buíque continuava ruim, e de lá até o Vale do Catimbau, pior. Enquanto via a paisagem escutava Angel, do Massive Attack. Ia pensando na imensidão de terra que ninguém pôs o olho ainda, pensando na existência das coisas condicionada a nosso olhar e na insignificância de nosso olhar, posto que as coisas sempre vão estar, a despeito de nós.

Já ia tirando o fone quando chegamos e minha mulher se apressou em dizer que eu deveria tirar e curtir o momento. Ela sempre se adianta em achar que sou um demente. Saímos para a primeira trilha, para ver os penhascos.

Levamos Aleph e ele andou parte da trilha. Ia escorregando com aqueles pezinhos entre os rochedos, pela areia fofa. Vez em quando eu o colocava na “cacunda”, como sempre chamava com meu pai. Em um momento Ana me disse: “Estás refazendo os passos do teu pai”. Eu entendi na hora.

Quando eu era pequeno costumava sair com meu pai para colocar o passarinho para cantar. Para quem não é daqui isso pode parecer sem sentido, mas basicamente ele levava o passarinho que criava – hoje não cria, acha que os bichos precisam ser livres – para cantar em um lugar ermo. Normalmente era no meio do mato e ele aproveitava para pegar uns grãos cujo nome não lembro e que serviam de comida para os papa-capins, sabiás, canários do reino, galos de campina que ele tinha. Eu não entendia na época a necessidade de isolar-se para ouvir passarinhos cantar, muito menos por que diabos os passarinhos precisavam ir para ali para cantar. Talvez hoje entenda: esse estar à borda da liberdade nos alimenta de esperança.

Mas eu não me importava muito com essas coisas. O que eu gostava era de caminhar com meu pai, de ir para dentro do mato e ficarmos só nós dois, alheios do mundo, esperando, às vezes sem sucesso, pelo canto dos passarinhos. Lembro de um dia estarmos com nosso cão, uma pastor-alemão chamada Lessie, e tirar fotos sobre uns tratores. Encontrei essas fotos dia desses, eu segurando com dificuldade a cachorra, um sorriso no rosto, em cima do trator. Tenho medo de voltar para o lugar a onde ia com meu pai e a paisagem ser totalmente outra, com casas de vila e bares.

Quando íamos para esses lugares, às vezes sem a cachorra, meu pai dizia que eu sempre pedia: “Cacunda”. Ele prontamente me colocava nos ombros, com aqueles meus vinte quilos, e me levava. Não lembro do que via lá de cima, mas lembro do pedido, de estar cansado e de meu pai me amparar. São momentos que ficam, que norteiam quem você é.

“Você está seguindo os passos do seu pai”. Eu senti tanto orgulho de estar no meio do Vale do Catimbau, presenteando a retina do meu filho com aquela paisagem que talvez ele nunca lembre. Eu só queria que ele lembrasse, daqui a vinte anos, dos meus cansados ombros com seus dezesseis quilos, de minhas mãos suadas segurando nas dele para que não caísse, de minha respiração ofegante de felicidade por tê-lo comigo. De minha parte, guardo, mais do que os penhascos, das incríveis formações rochosas feitas há milhões de anos, do por do sol atravessando a Pedra da Igrejinha; mais do que o vento frio da noite descendo, dos sinos das cabras da serra, da areia vermelha e da sensação de liberdade, lembro, como prisioneiro de um instante, do olhar do meu filho, que me inaugurou, me fez, finalmente, existir.

5 Comentários
  • fernando farias
    Postado às 10:57h, 04 julho Responder

    Conheci Catimbau aos 10 anos de idade. Creio que votei umas 20 vezes. Já cheguei a dormir numa gruta, com luz artificial de mortor, é claro. Cheguei a conhecer Meu Rei e a Vila de Porto Seguro. Ainda hoje sonho que estou alí. Vc ptrecisa voltar Wel­ling­ton.

    • Wellington de Melo
      Postado às 00:31h, 11 setembro

      Voltarei sim, Fernando. Obrigado pela leitura.

  • Gerusa Leal
    Postado às 09:07h, 01 julho Responder

    Você levou Aleph e a gente também nessa viagem, Wellington. Que bela (re)inauguração.

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