Entre todos os começos de livros, o que mais me encanta é o de Cem anos de solidão. Vejam só:
Muitos anos depois, diante do pelotão de fuzilamento, o coronel Aureliano Buendía havia de recordar aquela tarde remota em que seu pai o levou para conhecer o gelo.
E, dentro desse começo, o que mais me pira não nem isso. É o que vem depois, primeira definição de Macondo:
Macondo era então uma aldeia de vinte casas de barro e taquara, construídas à margem de um rio de águas diáfanas que se precipitavam por um leito de pedras polidas, brancas e enormes como ovos pré-históricos
Eu li Cem anos de solidão na adolescência e a imagem desses enormes ovos de dinossauro ficaram na minha mente como uma metáfora para o mágico escondido nas coisas simples. Quem não tem, escondidos em sua memória, ovos pré-históricos, essa magia camuflada de realidade? Essa magia só me foi possível descobrir porque peguei esse livro de García Márquez numa biblioteca. Mas não começa aí minha história com bibliotecas.
A lembrança germinal que modificaria toda a minha vida, que me daria um rumo e que me faria, muito tempo depois, diante do pelotão de fuzilamento dizer que eu queria ser alguém de livro. Meus ovos pré-históricos: também os descobri numa biblioteca.
Dona Marleide era uma vizinha que trabalhava na Biblioteca de Afogados. Não lembro como, mas certa tarde fui com ela para a biblioteca. Não lembro se fui eu quem pediu ou se foi minha mãe que recomendou. Ainda vou perguntar isso a ela. Enfim, minha mãe fez uma lancheirinha, com suco de laranja, bolacha “creme cráquer” e biscoitos. Não lembro da viagem, mas lembro de chegar àquele lugar e me encantar com o cheiro: papel velho, cheio de livro. Ainda hoje: vertigem quando lembro daquele cheiro de tempo. Dona Marleide me deixou numa seção de livros infantis, acho. Foi fazer seu trabalho. Eu andava nessa época com um bloquinho de desenhos. Fiz alguns, copiando gravuras da Disney. Até que achei: era um livro de capa dura, grandão. Na minha cabeça a capa era vermelho-acinzentado, mas deve ser um truque da minha memória, porque meu pai tinha uma coleção de história natural assim mesmo. Eu não estava mais na seção de livros de criança. Não sei se era de história natural. A memória me pregando peças freudianas? Só sei que o livro tinha bichos grandes, lagartos, onças, leões. Desenhei todos. Não sei onde estão esses desenhos. Achei só essa página aqui:
Na época não tinha desenvolvido o hábito de colocar datas, mas acho que isso é anterior a 85. Esses desenhos são como restos arqueológicos de mim mesmo, peças que recupero para entender de onde vim.
A tarde passou-se, dona Marleide veio, voltei pra casa. Maravilhado, como quem descobre um mundo só seu e não quer contar a mais ninguém, pra não acabar nunca. Tudo isso numa biblioteca. Acho que fui lá mais vezes, mas essa primeira vez, aquele livro com bichos, foi como descobrir um mundo diferente, um mundo possível dentro de mim. Aquela tarde, na biblioteca de Afogados, foi quando descobri meus ovos de dinossauro.
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