Recentemente um amigo me procurou pedindo ajuda com alguns textos que estava escrevendo. A ideia seria publicar um livro de poemas. Pediu que lesse e selecionasse o que me agradava. Li e gostei de pouca coisa. Alguns poemas poderiam ainda ser trabalhados, mas a grande maioria não passava do clichê e da prosa em cavalgamento.
O amigo me perguntou o que tinha achado. Disse, da maneira mais delicada que pude, que havia pouco ali que pudesse ir a livro. Ele perguntou se podia ajudá-lo recomendando textos. Eu disse que a melhor coisa era aprender lendo poetas, aprender pelo exemplo. Pediu autores. Recomendei, pra começar, Everardo Norões, que pra mim tem uma das qualidades que mais preso num poeta: a condensação de significado em poemas curtos. Pessoa me perdoe o sacrilégio, mas muitos poemas de Álvaro de Campos seriam mil vezes melhores se mais curtos.
O amigo perguntou se eu poderia fazer uma ‘triagem’ dos poemas que poderiam ser publicados numa edição que ele queria que fosse bilíngue. De minha parte, nunca permitiria a ninguém selecionar poemas meus para um livro. No máximo, pediria a opinião a amigos leitores – como peço, aliás – para ajudar a traçar o rumo que pensei para o livro em si. No final das contas, eu faria algo semelhante ao papel de um editor. Eu disse que o processo de escrever um livro pode ser lento. Falei do tempo que demorei para cada um dos meus. Ele queria publicar já. Perguntei quanto tempo vinha trabalhando no livro. Disse que escreveu, mas não tinha trabalhado sobre os poemas.
Foi aí que decidi escrever este post, porque me veio uma pergunta: por que meu amigo não conseguia notar que o que ele escrevia precisava de muito trabalho para poder ser chamado de arte? Por que com literatura é tão difícil ter essa percepção.
Um dos motivos que encontrei em minhas reflexões foi o fato de que, em literatura, a língua, que é nossa matéria prima, a princípio é dominada por todos os pretendentes a escritor. Digo a princípio porque a técnica literária não depende apenas do domínio das normas gramaticais ou de um conhecimento lexical amplo. Da mesma forma que, a centelha que distingue um grande músico de todos os outros vai além do simples domínio da teoria musical ou da execução dos acordes. Nesse ponto, uma coisa distingue e muito a arte literária de outras cuja habilidade em um determinado ‘medium’ ajuda a perceber a fraqueza do artista. Alguém que ouve um mau guitarrista o percebe no momento em que o infeliz começa a tocar. A mesma coisa acontece quando um pintor sem habilidade exibe sua obra, porque cores saturadas ou pinceladas tímidas ou imprecisas são facilmente identificadas por um olhar crítico. Com artes cênicas e dança, a mesma coisa, muito embora o ‘medium’ seja o próprio corpo e a habilidade ou a falta dela é mais uma vez perceptível na execução.
Com a literatura acontece – e aqui mais uma vez tomo o senso comum – o que acontece muitas vezes em minhas aulas de gramática: alunos que falam português há catorze anos têm uma certa resistência ao reconhecer a autoridade de alguém que ensina essa a norma padrão dessa língua. Quando lhes digo que o padrão para o verbo ‘mediar’ no presente é ‘eu medeio’, normalmente a resposta é uma careta ou resmungos.
Retomando o raciocínio: as pessoas ‘dominam’ a sua língua e creem que, por isso só, podem escrever. Alguém sem habilidade musical que tenta tocar violão, em algum momento, desistirá porque não conseguirá extrair do instrumento as notas que tem na mente. Alguém como eu, que não sabe dançar, pedirá socorro depois de pisar o pé da parceira e descobrirá -se ainda não souber – que não nasceu para aquilo.
Mas quem diz a alguém que escreve mal que o caminho não é aquele? A pessoa vai continuar escrevendo sem nenhum remorso, achando que está tudo bem, até encontrar alguém sincero o suficiente para dizer que não está legal. Imagino milhares de pretendentes a escritores como tartaruguinhas coxas na praia: se ninguém disser a elas que têm uma pata a menos, vão continuar entrando no mar.
Mas aí vem a pergunta: quem tem direito de impedir que as tartaruguinhas tentem se aventurar no mar, mesmo com só três patas? É, contra isso não tenho argumento. É a beleza da vida e são os riscos da arte: o que a faz bela e perigosa é se expor diante do mar, ignorando as chances que temos de sobreviver.
photo credit: madame.furie
4 Comentários
nike (sou querido amigo)
Postado às 20:39h, 01 julhoAmigo já vi muitas pessoas falando que o “Djavan ” é um poéta … O que vc acha ? Beijão Nike …
Wellington de Melo
Postado às 08:45h, 02 julhoNão sei quanto do que ele canta foi escrito por ele. Com certeza existe uma preocupação com o trabalho com a linguagem nessas letras.
Wellington de Melo
Postado às 10:15h, 01 julhoTocam, é verdade. Que bom que fosse sempre sozinhos. :)
Naathi
Postado às 08:52h, 01 julhoEita, depois dessa estou desistindo oficialmente. Hehe! Muito bom, é bem verdade que o talento é para poucos, mas mesmo maus músicos dedilham seus instrumentos sozinhos em momentos de tédio.