Subi no ônibus no Derby. Era de noite. Sentei ao lado de um cara, devia ter uns quarenta ou trinta e poucos. Se tivesse trinta e poucos, tinha a aparência desgastada, mais do que a minha. Eu olhava pela janela o fórum de Joana Bezerra – sempre que olho aquele fórum lembro dos cinzeiros de duzentos reais e sinto só um pouquinho mais de raiva do judiciário. Percebia esse cara com minha visão periférica. Foram segundos, acho. Tinha o olhar sem rumo das pessoas que vão em ônibus. Eu acho que quando vou de ônibus sonho mais do que quando vou de carro. Deve ser por conta das mãos livres e da falta de compromisso: andar de ônibus deixa você mais perto de seus sonhos e mais longe de você mesmo. Isso normalmente é bom.
Guardamos, eu e o cara, aquele silêncio de ônibus – próximo ao silêncio de elevador, que é na verdade mais agressivo, pois se está de pé e não há janelas para evitar o olhar do outro; restam o chão, os botões a porta por abrir. Em algum ponto do viaduto do metrô ele começou a falar. Reclamou do trânsito, dos ônibus urbanos: preferia os opcionais. Disse que não era luxo, só que era melhor mesmo. Disse que, embora enfrentassem o mesmo trânsito, pelo menos você estava no ar-condicionado. Eu disse que não enfrentaria o trânsito porque desceria antes, no Pina. Ele disse ah tá com algo de descontentamento.
Perguntou o que eu fazia. Comecei a achar invasivo demais. Respondi. Ele disse que a mulher dele também. Disse que queria fazer vestibular para Direito – ele, não a mulher. Eu não perguntei o que ele fazia e agora acho que fui rude. Minha parada estava chegando e eu achava que ele não ia conseguir terminar a história. Falou que já tinha feito Direito – três períodos – em outra faculdade, mas que era cara então deixou. Estava já descendo o viaduto da Joana Bezerra e ele falou que o sonho dele mesmo era ser juiz. Eu assentia com a cabeça. Não sei se me envergonho de ter sentido pena dele naquele instante, assim, revelando sonhos a um estranho. Tinha uma dignidade proletária que eu julgava perdida em mim. A parada chegando. Disse que com essa faculdade agora, achava que ia terminar, mas o mercado não era fácil. Concordei. Perguntou se eu sabia se alguma escola aceitava currículo – era pra mulher dele. Eu disse que agora era complicado, que só no meio do ano. Já ia pedindo parada e disse até mais.
Deixei o cara lá. Mais adiante o engarrafamento monstruoso de Boa Viagem o esperava. Ele ficaria ali, com aquele olhar sem rumo. Eu saí do ônibus pensando naqueles sonhos que já nascem sepultados. Depois pensei em tudo o que já tinha conseguido, vindo de onde vim, e afastei a ideia: decidi deixar o cara lá, com aquele mesmo olhar sem rumo, com sua vida tortuosa e seus sonhos por nascer.
Post-scriptum (2022): Anos depois dessa crônica, Miró da Muribeca escreveria “Janela de ônibus”. Já dialogávamos antes de nos conhecermos.
4 Comentários
Nathalee
Postado às 10:41h, 30 março“andar de ônibus deixa você mais perto de seus sonhos e mais longe de você mesmo”
Uma bela crônica, esse trecho então, é encantador, na medida em que expressa o que eu sempre sinto, e o que com certeza muitas pessoas sentem, quando estão dentro de um ônibus! uma mistura de sensações, pensamentos soltos e furvilhando, um pensamento que realiza tudo, mas que não demora nada, para perceber que não foi realizado nada, que o sonho foi sepultado antes mesmo de nascer!
parabéns ao escritor!
Wellington de Melo
Postado às 20:19h, 30 marçoObrigado, Nathalee! Volte sempre!
Wellington de Melo
Postado às 10:51h, 21 marçoObrigado, Gerusa!
Gerusa Leal
Postado às 10:36h, 21 marçoUma senhora crônica.