Sobre a carne dos poetas e a alma imortal dos gabinetes

Não seria esse uso da influência na esfera pública algo condenável para qualquer pessoa, inclusive – ou principalmente – para nós, poetas?

Roberto Piva, para mim um dos maiores poetas brasileiros vivos, está nos corredores do Hospital das Clínicas, porque não há quartos disponíveis para interná-lo.

Na internet há uma grande movimentação para tirá-lo dali. Soube da notícia pelo blog Espelunca, do Ademir Assunção e logo em seguida repassei a notícia pelo Twitter, tentei entrar em contato com alguns escritores de São Paulo por email, sem muito sucesso. No blog de Ademir e por alguns perfis do Facebook, entre os pedidos de ajuda, insinuou-se que qualquer um que conhecesse algum médico ou alguém que pudesse ‘dar uma ajudinha’ entrasse em contato. Quando comecei a ouvir esse tipo de movimentação fiquei mais preocupado.

O que havia nas entrelinhas? Leia-se: encontrar  alguém com influência para conseguir um quarto na marra. Esse tipo de ajuda tem duas implicações importantes. A segunda e talvez a menos grave – o que vou dizer é polêmico –  é o fato de que, se se consegue um quarto para o Piva, significa que alguém estará sendo liberado antes do tempo necessário para sua recuperação ou, ainda, que outra pessoa que teria prioridade de ir para quarto no lugar de Piva continuaria apodrecendo nos corredores do HC. Ação e reação. Mas a primeira implicação, mais importante para mim, é: não seria esse uso da influência na esfera pública algo condenável para qualquer pessoa, inclusive – ou principalmente – para nós, poetas?

Isso nos leva à pergunta crucial: somos os poetas carne diferente das dos outros seres humanos? Minha resposta é sim e não. Sim, porque, entre outros motivos que não cabem aqui expor, os poetas somos uma parabólica de dor. É justamente por isso que não posso deixar de pensar na multidão de miseráveis nos corredores do Hospital das Clínicas. Mais: fico pensando nas multidões se acumulando em todos os hospitais públicos do Brasil, a maioria em piores condições do que o HC. Não, porque o poeta é um formador de opinião como qualquer outro e, por que não, um formador de mentes e corações. Por que Piva merece um quarto e a velha mendiga que está ao lado dele, não? Não adianta usar demagogia e dizer ‘Vocês acham que o Piva aprovaria isso?’, porque a condição dele talvez impeça de julgar o caso, além do que é complicado pedir austeridade de alguém tão fragilizado. Aqui se trata de nossa integridade, como escritores e como cidadãos.

Minha argumentação será rebatida por uma dura recriminação, talvez por conta do meu uso do advérbio ‘principalmente’ no final do terceiro parágrafo. Haverá aqueles que julgam vir minha fala permeada de uma visão romântica do papel do poeta na sociedade. Aquela ladainha insistente de se considerar o poeta como arauto de verdades, exemplo de virtude, blá, blá, blá. Uma visão romântica, dirão. Somos iguais a qualquer outra pessoa. Concordo, e por isso voltamos ao mesmo ponto: iguais a quem? Ao agente público prevaricador ou ao cidadão honesto que se recusa a oferecer suborno a um guarda de trânsito corrupto? Qual o parâmetro para essa igualdade, qual o espelho? Minha visão é mais pragmática no sentido de achar que não se trata de ascender o poeta a um status de deidade, mas justamente de colocá-lo no papel de qualquer cidadão íntegro.

Acredito que devemos ajudar Piva e que  essa ajuda deve passar por outro caminho que não o da prevaricação. Uma conta bancária para ajudar a pagar um hospital privado? Um plano de saúde é quase impossível por seu estado (Piva tem Parkinson Alzheimer), mas quem sabe alguma instituição (privada) não o ajuda? Aceitar a ajuda de uma empresa que fará marketing social em cima disso, mas não uma ‘ajudinha’ de alguém dentro do HC ou da Secretaria de Saúde de São Paulo? Hipocrisia, dirão. Pode ser, mas negando esse jogo de influências, esse favorecimento espúrio, talvez estejamos, por um instante, investindo contra a alma imortal dos gabinetes.

Post scriptum 03/02/2010

Excelentes esclarecimentos da Renata, nos comentários abaixo. Vejam lá!

3 Comentários
  • Renata D´Elia
    Postado às 00:10h, 03 fevereiro Responder

    Caro Wellington,

    Te aviso quando sair o livro, não demorará muito mais que alguns meses! Verei Piva novamente semana que vem. Está lendo e escrevendo lá na caminha dele… vamos ver o que está preparando para nós!

    Manteremos contato!

    beijos!

  • Renata D´Elia
    Postado às 20:02h, 02 fevereiro Responder

    Caro Wellington,

    Sou biógrafa do Piva, em livro-reportagem sobre ele, Willer, Antonio Fernando de Franceschi e Roberto Bicelli, que deve sair esse semestre pela Azougue Editorial.

    Muito pertinentes suas colocações neste texto.

    Gostaria de ressaltar que várias hipérboles e imprecisões foram cometidas na última semana com a proliferação de mensagens sobre o estado de saúde e as condições “precárias” de Roberto Piva no HC de SP. Por isso, publiquei 3 posts esclarecedores em meu blog, antes e depois de visitar o poeta no hospital: http://www.magiconsundays.blogspot.com/ Espero que sirva aos que estão realmente preocupados com a saúde de Piva e não com militâncias “político-literárias” um tanto quanto controversas.

    Abraços!

    • Wellington de Melo
      Postado às 22:03h, 02 fevereiro

      Renata,
      Ótimo ouvir essas notícias. Louco para que saia seu livro sobre Piva! Fiquei muito feliz com seu terno acompanhamento dele e em saber que as coisas vão caminhando com nosso poeta. Beijos e obrigado pelas notícias!

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