Como sabemos, não existem línguas uniformes, mas sim variedades línguísticas que se unem para formar o que se pode chamar abstratamente de língua. Dessas variedades, uma, ou uma abstração dela melhor dizendo, consegue se sobrepor às outras, alcançando entre a sociedade um lugar de prestígio. Esse prestígio é tão grande no imaginário dos falantes que essa variedade chega até a confundir-se com a própria língua, convertendo-se em um modelo a ser seguido pelos demais falantes em situações de interação que requeiram um nível maior de formalidade. Chamamos essa variedade de diferentes formas, entre elas língua padrão, norma culta, variedade padrão ou variedade prestigiada.
Os usuários que detêm o domínio desta variedade gozam, em tese, de certo prestígio entre outros falantes. Uma série de fatores econômicos, sociais, políticos e históricos corroboram para que uma variedade alcance este lugar de destaque. Por sua vez, os usuários de variedades “não-padrão” sofrem um processo de ‘coerção’ para que utilizem a variedade padrão. Já na escola, onde se espera que o aluno faça uso da língua padrão em avaliações ou na interação com professores, diretores etc. , se identifica esse tipo de pressão. Mas mesmo os próprios usuários desempenham o papel de ‘policiar’ o uso da língua, buscando essa abstração que chamamos de ‘norma culta’ na fala do outro.
Entretanto, é importante lembrar que, cientificamente, não há como atribuir a esta ou àquela variedade esse status de ser ‘melhor’ ou ‘pior’, de ser ‘certa’ ou ‘errada’. Ao mesmo tempo, definir em que consiste efetivamente esse ‘padrão’ é difícil, entre outros motivos porque ele tampouco é uniforme: mais uma vez o que se considera padrão para um determinado grupo de falantes não o será para outro. Tomemos como exemplo o uso das formas ‘tu’ e ‘você’ dentro do país. Um gaúcho usará a forma ‘tu’ em quase uma totalidade de suas interações enquanto no Rio de Janeiro essa forma tem uma aplicação familiar e algumas vezes acompanhada de uma concordância verbal não padrão (tu vai ao invés de tu vais). Em vários estados do Nordeste, por outro lado, formas como tu e você convivem naturalmente, variando sua aplicação dependendo do nível do registro que determinada situação comunicativa envolva.
Pelo que foi dito anteriormente, é bom tomar cuidado ao pensar que a variedade padrão corresponde exatamente ao que propõem as gramáticas normativas. Digo isso por dois motivos: primeiro, porque assim como a língua não é o uniforme, a variedade padrão tampouco o será. Há níveis de formalidade e informalidade muito sutis de acordo com a situação comunicativa que pedem ‘determinado’ tipo de padrão. Ninguém se levantará para dizer que uma fala como “Me veja a conta, por favor”, dita por alguém em um bar, está fora do padrão. Ao mesmo tempo, essa forma pronominal enclítica poderia ser condenada por um corretor de redação desses vestibulares de meu Deus.
Segundo, por que formas que estão completamente assentadas em determinados graus do padrão (como as formas proclíticas de início de enunciado) ainda são condenadas por muitas gramáticas ou formas defendidas pelas gramáticas que soam estranhas aos falantes com certo nível de escolarização. Exemplo disso é a forma do particípio do verbo pegar (pegado) que não raras vezes é rechaçada até mesmo por universitários ou profissionais liberais ‘cultos’.
No final das contas, o principal ‘filtro’ para determinar o que seria padrão para um determinado grupo de falantes é justamente outro falante.
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