Por André de Sena [1]Doutor em Teoria Literária, professor da Universidade Federal de Pernambuco
Wellington de Melo é uma das maiores vozes da nova geração da literatura recifense. Deixemos de lado o seu trabalho como fomentador cultural junto ao grupo Urros Masculinos, que nos foge no momento, e foquemos unicamente a escrita contemporânea de seu segundo livro de poesias, [desvirtual provisório] (84 págs., Canal6 Editora), que tem nos embates, hiatos e intersecções entre o humano e a máquina seu tema principal desenvolvido já com maestria.
Ana Beatriz Durant, que assina as orelhas da obra, fala sobre sua divisão temática: “O livro é dividido em cinco partes, sem é claro, correr o risco da segmentação e distorção entre elas, a saber: A proto-máquina, A Máquina, A anti-Máquina, A hiper-Máquina, O pó. Na primeira parte, o nascer dos versos, diante dessa realidade vã, é cantado como pura necessidade, como sangue que brota da desordem. Na segunda, o poeta expõe a engrenagem diante da existência humana.
Na anti-Máquina, há uma inquietação diante de tanta inexpressividade do homem. Na penúltima parte, é possível vislumbrar um indivíduo lutando para não ser máquina, que ora o é, ora lampeja-se apenas homem, frágil. Em O pó, o derradeiro destino, o retrato de um ser que é apenas superfície, sem espessura, coberto por uma camada cinza que mata, penetrando aos poucos, apenas na inalação da maioria desavisada”. Apesar de o tema não ser novo, Melo consegue – ainda “cantando”, na melhor tradição poética ocidental, como atesta o prefácio – atingir momentos líricos de grande densidade, novamente nas palavras de Durant, “não geográficos, mas históricos, de homem contemporâneo, esgotado, estéril, que absorve maquinalmente o seu tempo sem as amarras que lhe são impostas pela Máquina”.
Tal esgotamento se traduz, às vezes, numa revisita ao treno e à lamentação de origem profética, bíblica – poder-se-ia mesmo dizer, mutatis mutandis, uma espécie de Livro de Jó da era internáutica, entrevista como algo próxima de um semelhante Deus velado e fugitivo, ou então, paradoxalmente, onipresente e castrador como o Grande Irmão orwelliano, uma cifra malthusiana irmã do topos niilista-poético do vazio (reparem na utilização dos símbolos gráficos da linguagem binária computacional no interior dos poemas): “Eu acordo & j@ não me reconheço na face embaçada do / espelho. Eu, parafern@lia de números que se repetem, que dão / conta de quem eu sou, de minha Fome, do Vazio que me devora. / Eu, repetidas vezes ninguém, sufocado entre telas que nada me / dizem sobre mim. Eu, uma extensão de um nada que se afasta cada / vez mais da terra da qual roubo meu nome: // homem. // Eu, homem, só me reconheço no Caos que me presenteia o / Verbo. Eu, translúcida sombra de mim, atravesso os dias como uma / lâmina fugaz, mas não me sei a não ser na palavra que alguém me / empresta. Eu, avesso de uma possibilidade, eu, mastigado pelo / cotidiano herético dos Anjos, finalmente descubro que pesa sobre / mim a herança de meu tempo, a única verdade que o Homem de / meu tempo entende: // a M@quina […]”.
Wellington de Melo é poeta promissor e já capaz de realizar grandes artefatos líricos, a exemplo de “Antes havia o poema”, uma releitua cyber do velho (e sempre atual) topos da Idade de ouro perdida: “antes do som / das bestas de silício / antes da chama / que se verte pela beleza do s@bado / antes da asa / acesa do tempo / que derrete / o desejo // h@ uma centelha // de vida que se eleva / sobre minha face // h@ um suplício de folhas mortas // & a seiva primordial / de que se compõe o sonho // h@ um fio de sangue // que escorre pela fria navalha / da noite das eras // antes de todo o caos / depois de toda a paz / em mim // havia o poema”. O gosto de cilício, parafraseando o posfácio assinado por outro poeta recifense, Artur Rogério, “ainda tá na boca e é, inesperadamente, dos mais saborosos”.
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