Eu nunca havia lido no Santa Isabel. Na verdade, não lembro de ter lido em teatro algum, assim, textos meus. Cheguei cedo, Valmir Jordão já estava lá, na frente. Conversamos um pouco sobre a FreePorto, sobre poesia, política e transgressão. Quis ver o palco, porque não pude ir aos ensaios – dava aula pela manhã. Entrei pelos fundos e tive a visão do teatro de cima do palco. Em minha memória de menino, o Santa Isabel era maior. Acho que é sempre dessa forma com memórias de criança: tudo parece maior, tudo tem um brilho diferente que nossas pupilas de adulto embaçam, tiram a mágica. De qualquer forma, o Santa Isabel ainda é lindo e mágico. Ali você sente o peso dos anos, as vozes que estão impregnadas nas paredes.
No camarim encontrei Silvana, que me recebeu com um abraço forte. Depois chegaram Malungo, Lara, Conrado e José Rodrigues. Júnior do Bode foi o último a chegar. Conversa de camarim até a chegada de Miró. Não estava bem. Comentou a coisa da Recitata, do desejo de ter sido diferente, da proposta de que eles se apresentassem com um cachê, que não concorressem. Notei sinceridade em Miró, notei a angústia dele com toda a situação, mas o que tinha que falar sobre a Recitata, já falei.
Estava preocupado em memorizar o poema “Wellington de Melo”, que tinha lido na final da Recitata e que iria ler de novo naquela noite. O poema estava todo na minha cabeça e estava pronto para declamá-lo para a plateia. O teatro já estava quase lotado. A orquestra tomou quase todo proscênio e restava aos poetas uma faixa de no máximo um metro para se apresentar no palco. Imaginava poetas como Miró, Lara e Malungo, expansivos, lendo naquele pequeno espaço.
Havia pouquíssimo espaço também para subir ao palco. Disseram – não sei quem, porque não vi gerente de palco – que entraríamos pela plateia. Acho que foi Malungo ou Valmir que recomendaram entrarmos pelas laterais e foi o que fizemos. Eu ainda com a angústia de declamar. Não vi a leitura de Conrado Falbo, que disseram ter sido linda. Acompanhei um pouco da declamação de Silvana, que demonstrou mais uma vez seu poder. Aí foi a vez de Malungo, que fez sua cena, com seu estilo característico. Na lateral eu via a plateia sem ver: você fica meio anestesiado. Reconheci Biagio na primeira fila e uma meia dúzia de outros convidados. Tocou Cortège, o movimento que antecedia minha entrada. Acabou. Fiz o que sabia que nenhum dos outros poetas faria: sentei na escadaria, tirei meu livrinho de poemas e… li. As três primeiras palavras do poema foram “não, não, não”. A cada palavra, arranquei uma folha do caderno. Três nãos para três coisas que considero inúteis quando se fala de literatura (e que vou manter em segredo). Depois comecei a leitura. Biagio depois me disse que seu instinto na hora foi pegar o papel e comer. Teria sido ótimo, mas ele hesitou.
De qualquer maneira foi um gesto para mim simbólico, estético e político. Lembro que pouco antes, ainda no camarim, quando disse a Silvana que eu leria meu texto, ela disse: “Mas você não declamou na Recitata?”. Tive a impressão de ela achar que a leitura reduziria meu espetáculo. Eu achava o contrário, porque era um alienígena entre os independentes e qualquer leitura ‘performática’ que fizesse me reduziria a uma pantomima do que eles fazem, seria um imitador. Não, eu estava em outra bossa, tenho outra visão da coisa. Ler, nas escadarias do Santa Isabel o poema “Wellington de Melo” foi a melhor coisa que poderia ter feito. E fiz.
2 Comentários
Artur Lins
Postado às 12:10h, 21 agostoBelíssimo.
Um dia descobrirei o segredo da tríade negativa. Ler nas escadarias foi um momento intimista, um círculo fechado ante a magnitude do local, a energia da plateia.
Muito bom.
Gerusa Leal
Postado às 11:28h, 21 agostoGostei muito de sua leitura sentado na escada do palco. O poema, em si, é muito bom. E você leu bem, em alto e bom som, em coerente tom e entonação. Foi bom de se ver.