Cruzada: um sacrifício de ver

Eu adoro filmes épicos, a pesar de ultimamente a leva de filmes deste gênero não fazer juz a clássicos como Ben-Hur ou Spartacus. O que me chamou sempre a atenção nestes filmes nunca foi a fidelidade à história, mas a beleza como o mito é transmitido. Agora, ao assistir Cruzada, senti ofendida a minha inteligência. Acredito que por mais que se diga que o cinema é uma obra de ficção e entretenimento e que veracidade histórica não é essencial, acho que o gênero dramático deve fazer com que você mergulhe num ‘mundo possível’.

Ora, se a cada instante você é puxado desse mundo por algo que lhe parece estranho no mundo criado pelo autor, se você deixa de acreditar nas verdades construídas neste mundo, algo vai mal. Você, por exemplo, pode acreditar na verdade de Matrix, porque ela, dentro do mundo criado, é coerente. Mas em Cruzada… bom…

FERREIRO INTELECTUAL

Cruzada conta a história de Balian, um ferreiro francês que, durante o luto que guarda por sua mulher suicida se descobre filho bastardo de um nobre de Jerusalém (Godfrey de Ibelin, interpretado belamente por Lian Neelson) que o procura para assumir a sua paternidade. Após matar um padre que ofendera a memória de sua mulher, Balian decide acompanhar o pai, mas este é morto durante a viagem à Terra Santa.

Chegando a Jerusalém, Balian ascende na nobreza, entre intrigas palacianas chifrins, se envolve com a princesa, curiosamente casada com o rival que herdou do pai e defende a cidade no cerco de Saladino até entregá-la e voltar à sua terra natal, desprovido de quaisquer posses. Pronto, é isso. Quer dizer, seria isso, se não fosse recheado de barbaridades que o roteirista iniciante William Monaham nos brinda, além da trama pessimamente amarrada.

ALIENS NAS CRUZADAS?

A começar pelo personagem Balian, que para mim deveria ser algum alienígena que caiu por aquelas paragens. Imagine um ferreiro hoje em dia, vindo de uma classe menos abastada, com uma vida cultural limitada pelas condições econômicas de nosso país. Agora imagine que é possível que ele construa um poço em sua casa, certo? Do poço ele poderia agora fazer um sistema de irrigação para sua plantação de tomates, com um aqueduto e um sistema de moinho, não é? Até aí plausível. Não? Agora imagine que ele sabe ler. Depois da alfabetização das massas no século XIX vai que não seja impossível.

Tudo bem, então esse ferreiro também pode ser engenheiro militar e medir trajetórias de morteiros, não é? Não? Pois bem, imagine isso há 800 anos atrás! Balian é o cara: ele sai de um vilarejo francês, filho de uma mãe solteira, completamente alfabetizado (no momento em que seu ‘pai’ chega a seu estabelecimento ele faz questão de dizer a mensagem inscrita numa pilastra, mensagem por sinal bem humanística para o século XIII.

UM VERDADEIRO GÊNIO

Depois, em poucas batalhas se transforma num exímio espadachim (posteriormente ele admitiria a um bispo que ser cavaleiro simplesmente faz com que um homem lute melhor…. não sei por que, mas isso parece com campanha para entrar nos marines americanos!) e não acaba por aí: chegando a Jerusalém transforma a terra de seu recém-descoberto-pai de um marasmo seco a um verdejante prado com os mistérios da irrigação. Você vai me dizer que os egípcios já dominavam isso e eu direi “lindo”.

Pouco depois vemos que as habilidades de Balian não param aí, pois ele se descobre um verdadeiro estrategista militar, medindo a distância dos ataques das catapultas e fazendo manobras com balistas que surpreendem até a Saladino. Balian é um deus, pode crer.

Tirando isto, o roteiro também é muito ruim: Balian tem como objetivo ir a Jerusalém pedir perdão por seus pecados e redimir a alma de sua mulher, mas esquece esse objetivo logo ao chegar, simplesmente enterrando simbolicamente a cruz da mulher no local onde fôra crucificado o Cristo. As intrigas palacianas são um horror: acho que o roteirista e Ridley Scott (que saudade de Blade Runner) queriam que fosse uma trama à parte, mas é sofrível ver como a imbecilidade é moeda fácil neste filme. Quem já assistiu Rainha Margot não precisa assistir mais nada do gênero. Mas tem gente que não aprende. Ou aprende muito rápido.

7 Comentários
  • Luís Gustavo
    Postado às 12:03h, 24 setembro Responder

    Acho que a intenção do diretor ou do roteirista não era ser uma reprodução fidedigna do contexto histórico e antropológico da época em que o filme se passou. A mensagem que o filme quer passar é extremamente poderosa. Talvez você não tenha gostado ou por não ter entendido a profundidade dos valores transmitidos ou porque você simplesmente se opõe a eles (os ideais). A trama é fictícia, com certeza há uma série de imprecisões históricas, também acredito que muitas adaptações foram feitas tão somente porque seria inadequado ser extremamente realista. E, ótimo que tenha sido assim, pois não é um documentário, é um filme, apenas uma arte. É palatável, é simples e com lições valiosissimas. Super recomendo o filme!

  • Dogmática
    Postado às 15:22h, 14 janeiro Responder

    Você mesmo deveria ter sido o roteirista e diretor do filme.

    • Wellington de Melo
      Postado às 08:07h, 04 março

      Talvez não tivesse ganho tanto dinheiro! (risos)

  • jorge
    Postado às 15:13h, 04 agosto Responder

    Wellington eu adorei esse filme, acho que ja o vi umas 3 vezes em epocas diferentes, porem nunca analisei, sempre assisti, e lendo sua resenha concordo plenamente.

    • Wellington de Melo
      Postado às 08:56h, 06 agosto

      Olá, Jorge. Pois é, rapaz, a primeira vez que assisti fiquei com a pulga atrás da orelha. Assisti de novo pra analisar. Abraço e obrigado pela leitura.

  • almir Sousa
    Postado às 16:57h, 14 agosto Responder

    rapaz trabalhei numa usina que tinha um caldeirero que não sabia ler, mas ele desenhava e fazia peças, moldava chapas e soldava que ate os engenheiros se admiravam. antes de marcar o chão sabe se ele n testou a força de lançameto das catapultas. e em filmes ha historias paralelas que faz parte da diversificação da trama.

    • Wellington de Melo
      Postado às 00:53h, 11 setembro

      Sim, Almir, não se pode ignorar o valor da sabedoria de profissionais que, muitas vezes, têm pouca instrução e muito conhecimento sobre sua área. A questão é apenas de conjuntura histórica, entende? Mesmo sem alfabetização, o caldereiro que conheceu vive num mundo em que a informação circula numa velocidade muito, mas muito maior que a que se tenta retratar no filme. Mas entendi seu ponto, claro.

Comente